O samba que veio do morro

O samba que veio do morro

«O samba é uma das músicas mais fortes do mundo, porque é o resultado de três raças: o africano, o português e o índio brasileiro. É por isso que o samba tem uma coisa que nenhuma outra música tem: um ritmo fora do comum, aliado a uma melodia e uma harmonia geniais. E isso deve se à união maravilhosa entre a melodia portuguesa, o fado – que é um lamento lindo! – com o ritmo africano. O samba é mulato...»

Numa manhã de domingo, em princípios de Julho de 1982, um homem de 44 anos, magro, os olhos cercados por uns óculos grossos, falava-me assim da arte a que se dedicou por inteiro. O seu nome: Baden Powell. Uma lenda viva desde que, muito jovem ainda, se tornou um dos eleitos de Vinícius de Moraes, com quem criou canções como “Samba da Benção” (mundialmente celebrizado a partir da sua inclusão no filme de Claude Lelouch, “Un Homme et Une Femme”, em 1966), “Canto de Osanha” (que se tornou num dos maiores êxitos de Elis Regina), “Berimbau”, “Canto de Iemanjá”, “Samba em Prelúdio”. Na noite anterior ao nosso encontro, Baden esteve no Alto da Ajuda, na Festa do “Avante!”, interpretando para muitos milhares de pessoas estes e outros temas que fizeram história no Brasil e no mundo.

Tímido, Baden sorri quando lhe falo de um outro “show”, vivido catorze anos antes no Teatro Villaret, e entristece se ao lembrar o seu poetinha Vinícius, desaparecido em 1980. «A música que fazemos tem o som da nossa língua», diz. «A guitarra portuguesa tem o som do sotaque português, tal como o samba tem o som do sotaque brasileiro. E as nossas emoções são comuns. Por isso eu acho que só Portugal poderia ter descoberto o Brasil.»

Nascido no Rio de Janeiro em Agosto de 1937, o músico deve o seu nome à admiração do seu pai (o violinista Lino de Aquino) pelo fundador do escutismo, Sir Robert Baden-Powell. Aos 8 anos começou a ter lições de guitarra clássica com o Professor Meira, um dos acompanhantes do lendário Pixinguinha. Aos 13, Baden Powell já conseguia tocar temas de Paganini, e tocava com os amigos do Morro da Mangueira nos bailaricos locais. E aos 18 já era um nome conhecido do meio musical do Rio de Janeiro. 

Em 1956 compôs o seu primeiro êxito, "Samba Triste". Foi nessa altura que conheceu Vinícius, de quem se tornou o principal parceiro durante mais de meia dúzia de anos. Depois, começou a andar de um lado para o outro: em 1964, passou seis meses na Bahia para estudar os ritmos do candomblé e as “canções de terreiro”; a seguir foi até aos Estados Unidos, onde trabalhou com Stan Getz; no princípio dos anos 70, esteve no Japão; e, no ano de 1974, foi até França. Levava um contrato para quinze dias de recitais no Olympia, mas o êxito foi tão grande que o palco mais prestigiado de Paris foi seu durante cinco semanas. 

A “cidade das luzes” tornou-se, assim, o poiso privilegiado de Baden Powell, que ali teve a sua residência principal até morrer, em 2000, tão longe e tão perto dos portugueses com quem, paradoxalmente, pouco se cruzou. Esta conversa aconteceu num desses escassos momentos que o mais universal guitarrista brasileiro partilhou com o seu público lusitano. «Se pudesse, estaria mais vezes em Portugal. É um país que me emociona.» Das emoções e de muito mais se falou nesta conversa.

– Qual foi a sensação de participar num espectáculo com a dimensaõ desta Festa do "Avante!"?

– Eu fiquei impressionado com toda aquela quantidade de gente, foi muito bonito. Não sei como é que se consegue reunir tantas pessoas! Fiquei emocionado quando fui ver a Festa, depois do espectáculo, porque tudo isto me toca muito. Fez me lembrar o Brasil, foi uma forma de eu matar saudades. E tem outra coisa: geralmente o artista é a principal vedeta de qualquer show mas, neste caso, o público e a própria organização foram também vedetas. Gostei muito, mesmo de toda aquela «explosão» de juventude. Bem diferente do que acontecia em Portugal há uns quinze anos atrás...

– As condições são outras...

– Claro. [sorri] Isso nota se.

– Entretanto, o seu espectáculo deixou nos um pouco com a sensação de que o “show” de Baden Powell não chegou a acontecer. Creio que toda a gente estava à espera de mais...

– É. Eu pensei solar alguns temas, apresentar outras coisas. Mas era impossível, estava muito frio. O vento, às vezes, dava a impressão que me ia derrubar. Entrava por dentro da caixa harmónica da guitarra e eu balançava ... E minha mão quase congelou, ficou dormente, e a certa altura eu já não sentia as cordas. Como se estivesse com a mão metida em gelo, sabe como é? E também não sei como estava saindo o som... De qualquer maneira foi válido. Mas para tocar guitarra, sozinho, para um público destes, que está longe de nós, é preciso ter a preocupação de não cansar. Senão as pessoas vão embora...

– Por outro lado, a figura de Vinícius de Moraes foi uma presença constante em todo o seu espectáculo, para lá do trecho que o Baden lhe dedicou...

– Sim, foi uma homenagem que eu quis fazer ao poeta...

– O trabalho do Baden com Vinícius marcou uma etapa no movimento da bossa nova. Qual foi a verdadeira importância que o poeta teve na sua carreira?

– Ah! O Vinícius teve uma importância muito grande. Quando ele morreu eu senti que fiquei órfão e acho que todos os seus parceiros ficaram órfãos. A minha parceria com ele foi muito importante na minha carreira, tal como todo o seu trabalho foi importante para a música popular brasileira. Vinícius era uma pessoa diferente, sabe?, e eu acho que já não se faz outro assim. Ficou um vazio muito grande, que não se preenche facilmente. É impossível. Pela pessoa que ele era, pela força da comunicação que ele tinha... O Vinícius era uma pessoa totalmente boa. Normalmente nós dizemos bem das pessoas que já  morreram, não é? Mas com o Vinícius é diferente. Eu nunca lhe conheci um inimigo nem ninguém que falasse mal dele. Quando o Vinícius morreu, a gente pôde ver, no Brasil, a força que ele era. Porque todos choravam: o operário, a empregadinha doméstica, os intelectuais... E aí é que se viu como ele se comunicava com todas as classes... Houve, inclusivamente, um motorista de táxi que veio dar me os pêsames. E eu disse: “Mas eu não sou parente do Vinícius...” E ele respondeu: “Pois, mas eu sei que o senhor era grande amigo dele.” Eu achei aquilo muito bom... E a minha empregada também, ela chorava: “Ah, 'seu' Vinícius morreu...” E ela nunca conheceu o Vinícius...

– O vosso relacionamento profissional funcionou sempre muito com base na amizade, não foi?

– Sim. Eu conheci o Vinícius quando tinha os meus 20 anos. Nós começámos a compor e ficámos amicíssimos. E o Vinícius era, para mim, como um segundo pai. Eu tinha uma amizade com ele que ia para além de tudo, sabe? E essa lacuna é “impreenchível”. Vai ficar um vazio para sempre, aquela saudade...

– Há pouco tempo esteve em Lisboa o Egberto Gismonti, que se referiu a si como o homem que revolucionou toda a arte de tocar viola. Ele disse mesmo que havia dois períodos: antes e depois de Baden Powell. Hoje você sente essa influência?

– Sinto, sim, e isso deixa me muito contente. Quando você faz uma coisa que as outras pessoas continuam é porque aquilo que você faz tem alguma importância não é? E realmente eu vejo, hoje em dia, que há muita gente a querer seguir o mesmo caminho. E isso é bonito. É a característica, a maneira de tocar, a “marca”... Eu acho que todo o músico deve ter personalidade muito forte, deve procurar retratar na sua música a sua própria maneira de ser... De uma forma tal que você ouça e diga: “Este aqui é o Baden Powell, este é o fulano de tal...” [hesita e sorri, tímido] Sabe?, é difícil falar de nós próprios...

– Durante o seu espectáculo, o Baden referiu-se a vários músicos brasileiros: o Milton, o Chico, o Paulinho da Viola... Como encara o actual movimento da música popular brasileira?

– Movimento mesmo, não há. Há uns compositores novos, mas movimento... Houve a Bossa Nova, depois a Tropicália, mas agora não. Quer dizer: há um movimento, mas não há um objectivo. Há compositores, há músicas novas... O Milton Nascimento, que é formidável, o Chico, que é um génio. Mas não há  propriamente um movimento. Há dois anos atrás, por exemplo, quando eu estive no Brasil, havia uma procura muito grande das músicas antigas, o que também é uma fase natural das coisas. As pessoas procuravam os chorinhos, os sambas antigos... E há uma certa razão para isto. Talvez seja por causa da opressão. E quando há uma abertura o povo vai procurar as suas raízes, o folclore... Depois vêm outras coisas. No caso do Brasil vamos esperar para ver. Eu, como músico tarimbado que sou, acho muito sinceramente que a música, no mundo, está caindo aos poucos. Mas creio que isso é uma situação política...

– No caso do Brasil, creio que todos estes anos de regime militar ajudaram a atrofiar e a desvirtuar as raízes populares da música. Está de acordo?

– Sim, claro. A falta de informação é o principal factor. Quando o povo não tem acesso à informação, fica por fora das coisas. Eu não vou ficar por fora, mas meus filhos vão... Hoje, por exemplo, as pessoas não sabem o que se passou há dez anos...

– Por outro lado há neste momento, no Brasil, alguns jovens compositores interessados em fazer coisas novas. É gente de vinte e poucos anos, como o Oswaldo Montenegro e o Cláudio Nucci, que estiveram recentemente em Portugal. Creio que este poderá ser um caminho importante...

– Olha, Viriato, o “negócio” é o seguinte: eu sei que muita gente vai ler o que eu digo e, portanto, não posso dizer certas verdades... E neste caso há uma coisa que se chama “máquina”. Hoje em dia estamos na época da máquina. Não há mais oportunidade de você fazer carreira. Antigamente a gente começava quando tinha 18 ou 20 anos e, quando gravávamos a primeira música de sucesso, pensávamos que daí a cinco anos teríamos o nosso público. Hoje não há mais tempo para isso. Não se podem programar as coisas para daqui a cinco anos. Programa se para daqui a três meses e se for, foi, se não for, acabou... Ninguém pode já fazer carreira, por causa da “máquina”.

– Quais foram as razões que levaram o Baden a fixar se em Paris?

– Foi uma coisa que aconteceu naturalmente. Eu fui a Paris a primeira vez para ficar três meses, de visita. Entretanto, aqueles dolarzinhos que eu tinha levado acabaram – e não podia sair dali “em branco”. Eu tinha um espectáculo no Olympia e, depois disso, apareceu um editor, um empresário... E resolvi ficar em Paris mais um pouco. Esse “mais um pouco” durou três anos e nesse tempo é que aconteceu tudo: o disco vendeu, surgiram os contratos... Eu fiquei  com um mercado que não podia abandonar. Tanto que hoje eu tenho 50 discos gravados na Europa e 12 no Brasil.  

– O Baden tem muitas ligações com os músicos franceses?

– Tenho alguns amigos, mas não tenho muita ligação. Conheço-os do “métier”, mas não existe uma grande ligação entre nós. A minha música continua com letras em português e não tenho a menor vontade de mudar ...

– E contactos com músicos portugueses?

– Também não. Conheço gente em Portugal, tenho até um aluno de violão, em Paris, que é português...

– No dia em que você chegou a Lisboa falámos do Carlos Paredes. Qual é a sua opinião sobre ele? 

– Só o conheço de nome. Sei que é um grande músico, mas não nos conhecemos pessoalmente, nem conheço o seu trabalho. Lembra se daquele ditado que diz: “Em casa de ferreiro espeto de pau”? É isso que se passa comigo. Eu não tenho sequer uma vitrola sabe?

– Desinteresse?

– Não. É uma coisa natural desta profissão. Há dias ouvi uma entrevista do Artur Rubinstein, que está agora com 90 anos e cego, e ele dizia que a coisa mais sensacional que ele descobriu agora, na velhice, foi a Rádio. Ele nunca tinha escutado Rádio, passou a vida inteira tocando. O mundo dele era um outro mundo...

– Vivendo em França, você continua a acompanhar o que se passa no Brasil, em termos sociais?

– Não muito. Só pelos jornais, de vez em quando...

– Por falta de sentimentos nacionalistas?

– Os meus sentimentos continuam iguais ao que eram. Sou sempre brasileiro, não é?

– Claro. Isso vê-se na sua música...

– Mas eu não fico ligado a um local. Não tenho necessidade disso...

– O Baden trabalha ainda com o Paulo César Pinheiro?

– Sim. Eu mando as músicas para o Paulinho, pelo correio...

– Ele foi o seu primeiro parceiro, depois do Vinicius...

– Foi. O Paulinho ainda era garoto, tinha uns 16 anos... Ele é um óptimo letrista. Um bom sambista. [sorri] Eu gosto mesmo é de fazer samba...

– Sempre ligado ao morro...

– É. Eu não esqueço as minhas origens.

– Acha que isso é importante, para um músico?

– Muitíssimo importante. É fundamental para aquilo que se faz.

– Se o Baden tivesse de dar um conselho a um músico que começasse agora, qual seria?

– Eu diria o seguinte: se ele for um intérprete tem, em primeiro lugar, que aprender a ouvir o silêncio. Se ele for um compositor tem que aprender a compor aquilo que está dentro do coração, e isso é válido para a vida inteira. Pode ser simples, pode ser moderno, pode ser o que for. 

– Se pudesse voltar ao princípio da sua vida e da sua carreira, teria feito as mesmas coisas? 

– Eu acho que até faria pior... [risos] Seria óptimo voltar ao principio. Para qualquer um de nós... 

– “Vida tem uma só”, não é?

– É mesmo. Mas eu sou muito feliz, sabe? Mesmo na infância eu fui feliz. [nostálgico] Todas aquelas coisas, saltar muro, quebrar vidraça, roubar manga do vizinho... Isso tudo reflecte a nossa vivência. Mas a vida vai mudando e hoje em dia não é mais a mesma coisa... 

– Saudade?

– Ah! Claro. Mas é disso que a gente vive. O importante é que a emoção esteja sempre viva. Se a emoção acabar é catastrófico, como dizem os Franceses... Sem ela não se pode continuar.

In Bocas de Cena | Ed. Campo das Letras, 2003
(Primeira publicação no Se7e | 1982)