É inevitável olhar para o incêndio que destruiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro como uma dolorosa metáfora do Brasil moderno. Se no primeiro os brasileiros perderam uma parte substancial da memória do passado, com o fogo que hoje consome o «país do carnaval» é o futuro que está em risco.
Não sei se, como discutem as redes sociais e alguns comentadores, o atentado a Jair Bolsonaro foi real ou uma encenação. Não seria a primeira vez, e no continente americano abundam os exemplos de falsas ou pelo menos duvidosas agressões – desde o Maine às Torres Gémeas – que se revelaram muito úteis para justificar investidas bem maiores feitas a seguir.
Seja como for, o atentado em si é o que menos importa. No limite, podemos dizer que Bolsonaro, o maior defensor da liberalização do uso de armas, se limitou a provar do seu próprio veneno: não há, na política brasileira, outro tão assumidamente racista e xenófobo, e todo o discurso do próprio e da campanha que o promove é um permanente incitamento ao ódio e à vingança.
Verdadeiro ou falso, o atentado a Bolsonaro poderá ainda assim reflectir-se – contra ou a favor dele – nas eleições do próximo mês. Não tanto por uma qualquer «onda solidária», que o candidato da extrema-direita brasileira dificilmente poderia suscitar, mas sobretudo pela profunda divisão instalada na sociedade brasileira desde o golpe político-jurídico que derrubou Dilma. E que o episódio da putativa facada poderá acentuar, com efeitos eleitorais imprevisíveis.
O problema do Brasil de hoje, é que já ninguém acredita em ninguém. A primeira eleição de Lula, em 2002, aconteceu como resultado do enorme cansaço dos brasileiros face aos governos do «sistema» que se alternavam no poder desde a restauração da democracia. A década seguinte foi a mais esperançosa da história do Brasil, apesar de algumas inconsistentes alianças, actos e hesitações da governação. O êxito do Brasil foi o êxito de Lula, para o bem e para o mal.
Mas 15 anos de poder transformaram também o PT, que acabou por revelar-se permeável a alguns dos pecados de que sempre tinha acusado os outros. Não espanta por isso que, sem o fundador (que ainda personifica para muitos eleitores pobres o melhor tempo da vida deles), o partido surja aos olhos de muitos brasileiros como apenas mais um, afinal também ele integrado num sistema onde a corrupção, a intriga e os interesses instalados se tornaram tão óbvios, que já nem ele próprio – o sistema – se preocupa em disfarçá-los.
Tudo isto, à mistura com um sistema judicial fortemente politizado e estruturalmente conservador, levou o Brasil para a beira do abismo em que se encontra. A farsa que foi a tomada do poder por Temer, primeiro, e o afastamento de Lula da corrida eleitoral, depois, só não descredibilizam a justiça brasileira porque ela já não tem nenhum crédito interno ou externo.
É perante esta situação de cepticismo generalizado que o Brasil corre o risco de eleger o primeiro presidente neofascista deste século na América do Sul. E, se tal acontecer, o incêndio do Museu Nacional vai parecer uma brincadeira de meninos ao pé da queima que se adivinha.
Publicado em RTP Notícias - 11.09.2018