José Ribeiro e a memória traiçoeira do cronista

José Ribeiro e a memória traiçoeira do cronista

A memória, já se sabe, prega-nos partidas, por vezes embaraçosas. E a evocação do meu 25 de Abril, que fiz aqui a convite do Município de Grândola, não fugiu à regra. Foi assim que, no “quente” do relato da minha vivência desse dia, a certa altura troquei o nome do técnico de som José Ribeiro pelo do jornalista Manuel Bravo.

Porque foi o primeiro – e não o segundo, como erradamente afirmo na gravação – quem no dia 25 de Abril arrombou o armário do Rádio Clube Português onde estavam os discos proibidos, permitindo assim que ouvíssemos as canções que sonorizaram a Revolução dos Cravos.

Seria, aliás, também de José Ribeiro, a ideia de utilizar “A Life on the Ocean Wave” como um quase-hino do Movimento das Forças Armadas – a ponto de essa música, escrita pelo inglês Henry Russell no século XIX, ter passado a ser conhecida, no Portugal do último quartel do século XX, como “Marcha do MFA”.

O erro de identificação do protagonista desse pequeno, mas decisivo, episódio de Abril – que foi exclusivamente meu e que, aqui e agora, humildemente assumo e pelo qual me penitencio –, esse erro tem porém uma explicação, ou mesmo duas.

Em primeiro lugar, José Ribeiro (na foto em versões de antes e de agora) e Manuel Bravo são, ambos, nomes da História da Rádio.

José Ribeiro por ter ajudado a fazê-la, mais que não fosse nesse momento em que, correndo todos os riscos que o gesto inevitavelmente teria se o golpe fracassasse, arranjou maneira de dissipar todas as dúvidas a quem, como eu, estava longe de Lisboa. E, ao mesmo tempo, criou a “banda sonora” que acompanhou o 25 de Abril e os tempos mágicos que se lhe seguiram.

E Manuel Bravo por ter ajudado a manter viva essa mesma História enquanto grande entusiasta e dinamizador do Museu do Rádio, o qual durou enquanto a RDP foi uma entidade autónoma, antes de ser obrigada a casar, mesmo contra a sua vontade, com a RTP. Como acontece noutros casamentos, a Rádio perdeu o nome de solteira, e só não perdeu mais porque ainda tem muita gente que gosta dela e a acarinha, dentro e fora de casa.

Depois, acontece que eu só os conheci pessoalmente há um par de anos, por ocasião de entrevistas que ambos deram para o programa do provedor do ouvinte, João Paulo Guerra, onde foram contar algumas outras histórias, da Rádio e da História. E, provavelmente por esse motivo, quando – de modo muito rápido e meio improvisado, tal como aconteceu com muitos momentos do 25 de Abril – quando fui chamado a recordar esse dia, tropecei nas brumas da memória, ou da falha dela, com o resultado que se (ou)viu.

Porque, evidentemente, eu só conheço episódio dos discos e do armário arrombado através do que contam os que estavam no Rádio Clube nesse dia. Eu tinha 16 anos, não se esqueçam, e estava em Ílhavo.

Fica, então, reposta a verdade dos factos, como tem de ser. Com um grande abraço e um ainda maior pedido de desculpas a um e a outro, mas sobretudo ao José Ribeiro por, inadvertida e involuntariamente, o ter tirado desta pequena história. Mesmo sabendo que não seria nunca o meu engano a apagá-lo da História, a grande, que é a que verdadeiramente importa.

Afinal, tratou-se – como lá digo – de um testemunho imperfeito, com erros e com enganos que gostaria de não ter cometido. Mas, como diziam os meus velhos mestres e não me canso de repetir aos camaradas mais novos – e até a alguns dos outros – só não erra quem não faz. E o grave não é errar, é não assumir que se errou. Eu errei, enganei-me, pronto. E, assim sendo, só posso – só devo – reconhecê-lo. Frontalmente, com humildade, e até com uma ponta de vergonha por não me ter apercebido do erro a tempo de o evitar. Mas a verdade dos factos pode sempre ser reposta, e é isso que, aqui e agora, estou a fazer.

[Apenas uma nota final em rodapé, porque neste ofício não chega ser-se honesto, é também preciso ser-se justo: o engano poderia ter passado impune se não fosse a atenção de um velho amigo e camarada de armas, canetas e microfones – António Macedo – que me ligou hoje, a dar o devido e mais que justo raspanete, assim que ouviu e se apercebeu da 'gaffe'. Mas é mesmo para isto que os amigos servem. E é também por isto que eu e o Macedo o somos desde há uns bons 40 anos, e havemos de continuar a sê-lo até à eternidade.]

Esclarecimento publicado no Facebook, 27.4.2020