A apresentação pública foi há um mês (a 18 de Maio, para ser exacto, na Livraria Círculo das Letras, em Lisboa), mas por circunstâncias várias que não vou detalhar, só agora me foi possível lê-lo com o vagar a que me obrigo para com os livros e autores de que gosto.
É, porém, um livro que se devora em pouco tempo. Tão pouco quantas as páginas de que dispõe (cerca de 30, sem numeração), mas que exigem a atenção aguçada e exclusiva do leitor, como é próprio de todas as coisas que valem a pena.
Chama-se, o livro, “Bluff”, e o seu autor António Ferra. É uma história que nos revela, em flashes curtos, os detalhes da vida de uma Graziela casada com um Jacinto bêbado e disfuncional possuído por t(r)emores de vários demónios que sobrevoam os descampados periféricos de um lugar sem nome nem geografia. Vidas feitas dos vários bluffs da vida real, onde se cruzam enganos e sentimentos, incertezas e contradições, seres e pareceres com alma e sem futuro aparente, pequenas coisas e momentos de humana desumanidade.
António Ferra é dos escritores mais sérios que conheço. Sério na vida como na literatura que produz, ainda que, aparentemente, não a leve muito a sério. A sua arte, porém, vai muito para lá dos livros que escreve, e quem o conhece sabe que o António é também um artista plástico de talento invulgar, capaz de juntar os mais diversos materiais – tintas, tábuas, pedaços de papel, desperdícios naturais e artificiais, quase tudo o que tiver por perto – em (re)criações surpreendentes e nunca supérfluas.
No que aos livros diz respeito, é autor de umas três dezenas de títulos que abrangem quase todos os géneros – teatro, contos infanto-juvenis, pedagogia, narrativa, poesia – que vai publicando em pequenas edições, as mais das vezes em editoras igualmente pequenas, ou mesmo sem editora alguma.
Este “Bluff”, que só o é no nome, saiu com a chancela da Douda Correria, uma jovem editora que se assume como um “labirinto de afectos” feito de autores de línguas e linguagens várias. António Ferra não busca os holofotes da fama, e por isso dificilmente lhe encontrarão os livros nas grandes superfícies comerciais. Por um lado, ainda bem, já que a literatura de massas é frequentemente uma maçada, quase sempre não sabe a nada, e só é lucrativa para quem a faz.
Quase imediatamente antes de “Bluff”, António Ferra publicou, por conta própria, dois outros grandes pequenos livros de tiragem limitada (“Já próximo dos anjos”, em 2018, que teve apenas 87 exemplares, e “Dos livros levanta-se um pássaro”, editado um ano antes, de que fez imprimir 125) e pelo meio produziu um par de plaquettes que distribuiu por um ainda mais pequeno e selecto número de amigos.
É, por isso, um autor raro - em todos os sentidos da palavra - e que, talvez por essa razão, carece ainda da atenção que a arte dele merece. Ou talvez não seja tanto assim. Afinal, o António é um homem do mundo e com muito mundo, mas a última coisa que quer é ser um autor mundano. Conhece-o quem o lê (e o vê e o sente) e lê-o quem o conhece. E quem o conhece e lê sabe que é isso mesmo o que mais (lhe) importa.
O resto, a feira de vaidades que domina o mercado e boa parte da “literatura” que por cá se faz, tudo isso é apenas bluff. Coisa que o António não faz. Felizmente para nós, leitores por escolha própria e talento dele.
E se, por acaso, este meu testemunho de leitor atento (mas não venerador e muito menos obrigado) vos deu vontade de o conhecer melhor, façam então o favor de ler com olhos de ver o livro, os livros, do António Ferra. Só têm a ganhar com isso.
Aventar, 20.Jun.2019