Este livro nasce de um gesto de amizade. O jornalista e poeta Viriato Teles traduziu “33 Revoluções”, talvez “a mais definitiva de todas as obras de Canek Sánchez Guevara, escritor cubano que passou a vida sob o peso do apelido - herdado do avô, Ernesto Guevara de la Serna, o mítico Che.
A novela é curta e não destituída de interesse (já lá iremos), mas a singularidade deste livro está no retrato de Canek, traçado pelo tradutor e amigo português numa longa introdução que ocupa quase tantas páginas quanto o texto principal. Ao explicar com grande detalhe o trajecto biográfico e literário de Sánchez Guevara, Teles sublinha o modo como ele construiu para si um lugar no mundo, difícil e desalinhado, mas assente numa noção aguda de liberdade pessoal.
Crítico feroz do regime de Fidel Castro, foi também odiado pela direita, por não renegar a sua origem ideológica (criticava o poder de Havana não “porque ele seja comunista, mas sim porque não o é”). Colocando-se ostensivamente á margem de maniqueísmos simplistas, não agradava a ninguém. Considerava-se “anarquista, libertário, (…) ego-socialista, (…) qualquer coisas que não me seja imposta e que eu não possa impor aos demais”.
Nascido em Cuba, cresceu entre os exilados latino-americanos na Europa, embebido num ambiente de discussão permanente e espírito crítico. Na idade adulta, seguiu duas linhas de força do avô, deixando-se ir, a deambular pelo mundo e pela vida, como “vagabundo profissional, (…) filósofo de supermercado, cronista do que carece de interesse, escritor de nada em concreto”, até á morte precoce, em 2015, aos 40 anos. Transcrito na íntegra por Teles, um resumo autobiográfico publicado por Canek na revista “Cuba Nuestra” é o melhor texto deste livro, um manifesto existencial de uma lucidez despojada.
Quando à novela, fragmentária e no osso, mostra um ficcionista atento ao pulsar da vida quotidiana de um burocrata ao serviço do Estado, consciente da asfixia social, mas incapaz de a combater. Ele é apenas mais uma roda na engrenagem, mais uma espira de um disco riscado - metáfora que atravessa todo o livro, simbolizando a repetição perpétua de tudo, dentro de cada casa, de cada prédio, nas ruas, na cidade, no país inteiro.
A disrupção dá-se com a notícia do naufrágio de uma balsa com fugitivos da ilha. O narrador, fotógrafo nas horas vagas, sai da linha, arrisca, capta imagens. E a realidade, com o seu lastro de tragédia, mostra então o seu verdadeiro rosto.
Expresso, 10.Nov.2017
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