Lançada em Portugal pelos 50 anos da morte do avô, esta curta novela póstuma do neto de Ernesto “Che” Guevara tem tanto de autobiográfico como de alegórico, desvendando um autor munido de uma ampla capacidade sintáctica e eficaz agilidade na linguagem (“no apartamento, a solidão recebe-o em toda a sua nudez e convida-o a deitar-se a seu lado”).
O protagonista não tem nome, trabalha num Ministério. Nunca é dito, mas o cenário é, obviamente, Havana no final do século XX, onde “nada funciona, mas tudo continua igual. Sempre igual. Como um disco riscado que se repete sempre”. O título do livro resulta dessa imagem.
A influência de Kafka é subtil - mas está lá. Aliás, o autor checo é referido nos gostos de Canek, na esclarecedora e apelativa introdução de Viriato Teles onde, entre outras coisas, ficamos a saber que uma parte deste livro terá sido escrita em Lisboa, onde o cubano morou em 2008, por uns meses.
Há passagens extremamente elucidativas como a abordagem pela polícia, sanada pela apresentação simultânea do BI e do cartão do Partido (“um negro a correr na escuridão é sempre suspeito”, justifica.-se a Autoridade), a balsa frágil lançada ao mar, ou os livros forrados, para poder responder que está a ler Agatha Christie “mesmo que se trate de Kundera”.
Autor e personagem não fogem ao jogo de espelhos evidente. “Eu sou só uma testemunha do meu tempo”, diz-nos este alter-ego de Canek, falecido em 2015, meses depois da conclusão deste livro, resultado de complicações com uma intervenção cirúrgica. Deixou novelas e contos, poemas, ensaios e crónicas. Passemos então a lê-lo.
Time Out, 8.Nov.2017
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