A nostalgia da esperança

A nostalgia da esperança

Inevitável a nostalgia? Muito provavelmente sim, tantas foram as transformações e tão diversos os rumos seguidos pelos protagonistas desta história longa da música popular em Portugal.

Na verdade, nenhuma revolução se faz com cantigas. Mas elas são sempre parte integrante de qualquer movimento social e político, reflectindo-lhe os intentos, analisando-lhe os defeitos e as virtudes, antecipando até as suas consequências de futuro. Na verdade, os hinos cantados pelo Coro do Exército Vermelho seriam tão impensáveis sem a existência do estalinismo como as «profecias» de Tien Cien sem a alvorada da massificação maoista. Ao longo das épocas, o canto e a poesia foram uma arma de dois gumes, colocada ao serviço da(s) resistência(s) ou dos órgãos do poder consoante os interesses, as crenças e os próprios sonhos dos seus criadores e intérpretes.

Entre nós, a canção enquanto prática social é quase tão antiga como a própria nacionalidade. A cantar se fez o retrato da revolução de 1383, a cantar se enalteceu Maria da Fonte, a cantar se traçaram os fados da primeira república. Foi como cantor de feiras e romarias que António Aleixo nos falou de «um Deus que se maneja / em troca de promessas e orações / p'ra o homem conseguir o que deseja» e escarneceu das ordens e das promessas dos tiranos, tornando-se assim o primeiro cantor de protesto com direito a lugar na nossa história. Da música a que chamam erudita nasceriam, depois, as «heróicas» de Lopes-Graça, espécie de hinos neo-realistas da resistência ao salazarismo. O movimento cantigueiro propriamente dito, no entanto, só começaria a desenhar-se em fins dos anos 50, após a ruptura de José Afonso com o fado de Coimbra que entretanto atingira «uma fase de saturação» e cuja necessária renovação enfrentava a hostilidade dos elementos mais conservadores da Academia.

Zeca encontrava-se já fora de Coimbra, quando compôs «Os Vampiros» e «Menino do Bairro Negro», referências iniciais daquilo a que se convencionou chamar a «era dos baladeiros». O «pai» desta revolução musical contará mais tarde: «Em Coimbra, as coisas mudavam lentamente. Novas remessas de estudantes, menos pitorescos mas mais conscientes de, que os do meu tempo, vais devotados aos problemas que fatalmente surgiam num meio sufocado por uma tradição as mais das vezes inútil, intentam, à semelhança do que já outras gerações haviam feito, romper declaradamente com o bafio, pôr de parte a quinquilharia passadista do velho romantismo do "Penedo", realizar ao nível associativo uma modernização da vida académica dentro dos limites a que os forçava o estreito meio geográfico em que viviam.»

Um desses estudantes chamava-se Adriano Correia de Oliveira, e será a sua «Trova do Vento Que Passa» que, durante a crise de 62, se transformará numa espécie de hino do movimento associativo. Ao mesmo tempo, em Lisboa, Luís Cília conhece Daniel Filipe e compõe os primeiros trabalhos («Meu País» e «O Menino Negro não Entrou na Roda») imediatamente antes de partir para Paris, recusando a guerra colonial e dando início a um longo período de exílio onde seria uma das vozes portuguesas mais importantes.

A estes nomes, outros se juntarão, dando corpo e força a um movimento que se adivinhava já imparável: Manuel Freire, Vieira da Silva, Francisco Fanhais, José Jorge Letria, Pedro Barroso, Filarmónica Fraude, Samuel, Sérgio Godinho, José Mário Branco, Barata Moura, Fausto e Vitorino, entre muitos outros.

Em 29 de Março de 1974, o «encontro da canção» realizado em Lisboa, no Coliseu dos Recreios, por iniciativa da Casa da Imprensa, assinalava já o fim próximo do regime. Na véspera, Marcelo papagueava pela Televisão a última das suas «conversas em família». No final do, espectáculo, os cantores e o público uniram-se numa só voz, cantando « Grândola, Vila Morena». Entre os assistentes encontravam-se alguns dos oficiais que, menos de um mês depois, encabeçariam o Movimento das Forças Armadas. A «senha» da revolução estava definitivamente escolhida.

Do que se passou depois de Abril todos estamos (ainda) lembrados. A canção desceu à rua e fez-se arma, presente em todos os locais onde era necessária. O movimento radicalizou-se, apareceram as inevitáveis divergências, surgiram as elitismos, as acusações, as zangas, os desencantos. Alguns desistiram, outros fizeram os possíveis por recusar o passado que tinham. Adriano morreu, vitima de desamor.

E agora? Fazemos os possíveis por continuar, escondendo tantas vezes no riso as lágrimas por tudo o que ficou por fazer. Uma vez por ano ouvimos «Grândola» e embebedamo-nos metodicamente até às tantas em jantares comemorativos, manifestamo-nos ruidosamente e, pelo fim ida tarde, voltamos a casa para uma refeição ligeira que amanhã é dia de trabalho.

Valeu a pena? Claro que valeu, caramba! De outro modo não estaríamos agora aqui, a cantar com o Cília, o Zé Mário, o Paredes e o Fausto, na certeza de que até as angústias mais cruéis hão-de um dia destes rebentar pelas costuras. E então poderemos outra vez sair para a rua, de viola na mão e gargantas abertas, prontos para o que der e vier.

In Canto de Intervenção
Programa do espectáculo comemorativo do 10º aniversário do 25 de Abril
Textos de Viriato Teles | Capa de José Santa-Bárbara
Organização e edição Associação 25 de Abril | 1984