Das muitas recordações que guardo de Sérgio Godinho, há uma que se sobrepõe a todas as outras – e de que, penso, nunca lhe falei. Ele é uma das vozes que me contaram, em directo, o 25 de Abril e, mais do que isso: é dele o tema de que melhor me lembro na banda sonora particular que guardo desse dia inicial. A cantiga, não mais do que um refrão quatro vezes repetido, chama-se “Maré alta” e foi ela que me (nos) desvendou o rumo do golpe militar.
Eu explico: para os que, como eu, viviam longe de Lisboa, a Revolução viveu-se sobretudo através do Rádio – que teve um papel central no desenrolar dos acontecimentos, desde ser a voz do posto de comando do Movimento das Forças Armadas, até ao relato da rendição no Largo do Carmo – mas o que se ouviu nas primeiras horas eram essencialmente marchas militares, intercaladas no Rádio Clube com os comunicados do MFA.
Assim, à parte uma outra informação por telefone (para os afortunados que possuíam aparelho e conseguiam ligação) ou, mais pela tardinha, pelos vespertinos que chegavam e eram disputados como pão, não era fácil dar resposta à dúvida comum: seria aquele um golpe para pôr fim ao regime ou, pelo contrário, para devolvê-lo à velha matriz salazarista?
A dúvida só se dissipou quando na Rádio começámos a ouvir as canções que sabíamos proibidas, mas – pelo menos comigo – foi com Sérgio Godinho que se fez luz: «A liberdade está a passar por aqui», cantava ele, repetindo o que já lhe conhecia mas que nessa altura ganhava a força das premonições realizadas. Nesse momento tive a certeza: a liberdade dava-se a conhecer, e já não a deixaríamos ir-se embora.
Mas Sérgio Godinho entrou na minha vida um par de anos antes de Abril, num dia longínquo do século XX, algures entre finais do ano 71 e princípios do 72, quando – não me lembro ao certo onde nem exactamente com quem, mas de certeza graças a algum amigo mais velho, dos que já tinham mesada e mínimos de autonomia – ouvi pela primeira vez um disco de pequeno formato, o chamado EP, com quatro canções diferentes de tudo o que até então me era dado conhecer. As cantigas tratavam de assuntos comuns com uma linguagem incomum, tanto na música como no texto, e não sei o que nessa altura mais me seduziu: se as palavras invulgares de “Charlatão” ou do “Romance de um dia na estrada”, se a sonoridade que as envolvia e não se encontrava em mais ninguém.
A verdade é que, nesses tempos, Portugal era uma seca. Um imenso redil de gente mansa dirigido por gente falsa, onde pensar era um risco e pensar diferente era um crime. A esperança fugaz que poucos anos antes se fez sentir – quando uma cadeira de lona concretizou num instante o que quatro décadas de conspirações não tinham conseguido – depressa se desvaneceu e, tirando as moscas, tudo continuava quase igual, mesmo se com diferentes rotulagens: a PIDE transformou-se em DGS, a Censura passou a Exame Prévio, mas uma e outra continuaram a ser os pilares da repressão que sustentava o regime, acossado por uma guerra que se travava longe daqui, abusiva e impropriamente em nosso nome.
Ora, para esse peditório o Sérgio não estava disposto a dar. E, quando chegou a altura de ir dilatar o império e a fé, disse que não e fez-se ao mundo – e essa é talvez a razão primeira de ter optado por fazer as coisas que faz da maneira como as faz. E também o que explica a adesão imediata à música dele pela malta do meu tempo. À época, como qualquer adolescente, eu frequentava Deep Purple, Pink Floyd, Moody Blues, Stones. Dos que se exprimiam em português, gostava de Zeca e ouvia com agrado alguns “baladeiros” que procuravam ser uma voz alternativa à pasmaceira dominante. Mas, sem desprimor para nenhum dos outros, o certo é que Sérgio Godinho tinha uma outra linguagem: mais solta, mais irreverente, desconcertantemente futura, e por isso mesmo mais próxima dos nossos anseios juvenis.
O facto de Sérgio viver fora de Portugal ajudava, é claro. Longe das mordaças oficiais era com certeza maior a tentação de pisar o risco e cantar o que os zeladores da moral e dos bons costumes não queriam que se ouvisse. O EP com que se deu a conhecer era parte de um disco maior, Os sobreviventes, que seria publicado em 1972 e onde se encontravam “Maré alta” e outras canções que haveriam de ouvir-se abundantemente também nos dias e semanas que se seguiram à Revolução.
E a verdade é que, desde então, o Sérgio nunca deixou de estar presente nos momentos mais importantes da nossa existência. Regressado a Portugal, continuou a fazer aquilo que sabe, como só ele sabe. E nem a urgência das horas da brasa o afastou da linha-da-vida que atravessa toda a grande obra que criou. Porque é de vidas que ele fala sempre nas histórias que canta e conta como mais ninguém: os amores e os desamores, as alegrias e as tristezas, as esperanças e os desencantos – tudo isto se encontra nas canções que escreve, nos livros e nos filmes e no mais que desde há meio século tem vindo a produzir.
A arte do Sérgio tem muitas características que a tornam única e insubstituível, mas há uma que me parece essencial: a capacidade de dizer aquilo que todos somos capazes de sentir, mas poucos sabemos exprimir de modo tão claro e simples – e, ao mesmo tempo, tão profundo e complexo, tão comum e tão único. Tanto que, por vezes, aquilo que escreve até parece fácil – e nunca é.
Sei de muita gente, eu incluído, para quem as canções dele são sempre, mais do que um prazer, uma descoberta. Porque ele nos conta aquilo que pensamos já conhecer, mas acrescenta-lhe sempre algo mais. E é também isso que explica o modo como a sua obra consegue ultrapassar incólume qualquer julgamento temporal: quem não saiba dificilmente perceberá, ouvindo hoje, que entre “Liberdade” e “Só neste país” há mais de 30 anos de diferença – porque qualquer delas poderia ter sido escrita hoje ou sê-lo no ano que vem. A habilidade de Sérgio para fintar o tempo não é um elixir da eterna juventude, mas quase. O segredo está em nunca deixar de perguntar – e isso tem sido uma constante em todos estes anos de música e histórias e vidas várias que o Sérgio gosta de partilhar connosco.
«Ter sempre a certeza das dúvidas / por via das dúvidas saber o que achar», diz o Sérgio numa das muitas canções definitivas que já escreveu. Esse é provavelmente o mais acertado resumo da obra dele e a razão porque tantas vezes nela nos revemos e encontramos: esta inquietação tranquila de quem não desiste de querer saber hoje um pouco mais do que sabia ontem, consciente de que isso é ainda assim menos do que saberá amanhã.
Por isso acredito que celebrar Sérgio Godinho é também um modo de nos festejarmos a nós próprios, à vida que vivemos e ao que nela descobrimos. E não duvido de que, com ele e a partir dele, todos nós crescemos um pouco mais.
Obrigado, Sérgio, também por isso. E por favor nunca deixes de me inquietar.
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Grândola, Abril/Novembro 2017