O ano de 1967* surgiu como um tempo de fantasmas onde parecia não haver lugar para a esperança. O país vivia em silêncio, um silêncio feito de medos que contrastavam com a agitação reinante noutros olugares do planeta. Lá de fora chegavam os ecos de movimentos vários: a beatlemania e o feminismo, os hippies e o pacifismo.
Os jovens norte-americanos celebravam os seus mártires, que se revelariam de modo superior sob a forma de Jim Morrison ou ]anis Joplin. E tinham, finalmente, uma causa para a revolta, perante a América e o Mundo, com a agressão imperialista contra o Vietname, iniciada em 1963 pelo US Army. Esse mesmo Vietname que Ernesto Che Guevara, assassinado esse mesmo ano na Bolívia, queria multiplicar por duas, três, muitas revoluções. O mundo assistia ao descontentamento generalizado da geração que havia de desaguar em Woodstock, mas que teria de esperar ainda mais uma dúzia de meses para viver, nas ruas de Paris, a euforia de qualquer coisa muito parecida com uma revolução.
Para os portugueses, nesse já longínquo ano de 1967, a guerra era outra e fazia-se em terras de África, para defesa de um império que nunca o foi. Salazar, ditador de todos os portugueses, tentava manter o país nos brandos costumes do fado-futebol-e-fátima, por que a Pide e a Censura se encarregavam de zelar. Esforço inútil para quem, um ano depois, seria derrubado, sem honra nem glória, por uma vulgar cadeira de lona...
«Quando se caminha para a frente ou para trás, ao longo dos dicionários, vai-se desembocar na palavra Terror», escrevia, então, Herberto Helder. Nesse tempo de silêncios são poucos os artistas que se erguem contra esta mansidão angustiada. E esses têm de conquistar, palmo a palmo, o seu espaço. A rádio e a televisão são a voz do dono onde cabem apenas os nomes tolerados pelo regime, os jornais estão domesticados pelo lápis azul de um bando de coronéis. São os anos mornos do nacional-conçonetismo. Fora de jogo, dispostos a arriscar e com vontade de abrir novos caminhos, meia dúzia de vozes isoladas fazem-se ouvir em lugares diferentes e de modos diversos: a poesia de Manuel Alegre e Fernando Assis Pacheco, a partir de Argel e Nambuangongo; as vozes claras de Adriano Correia de Oliveira e Manuel Freire, em Coimbra; José Mário Branco e Luís Cília, no exílio de Paris. E José Afonso, professor de liceu, cantor nas horas vagas e activista por conta própria.
Até então, Zeca publicara discos dispersos em formato de EP (45 rotações, com dois temas de cada lado), gravados entre fins dos anos 50 e princípios de 60. Com a capa e a batina do tradicionalismo coimbrão arrumadas no sótão, esses discos reflectiam já de modo subtil o desejo de agitar as águas pardas do burgo lusitano. Ainda não eram o big bang, que chegaria no início da década seguinte (com «Cantigas do Maio», «Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades», «Gente Daqui e de Agora», «Os Sobreviventes»...), mas de alguma forma preparavam-lhe o terreno.
Em 67, a Discoteca Santo António edita um disco de longa duração com doze temas. Nasce assim o primeiro 33 rotações de Zeca Afonso, coisa que hoje pode parecer irrelevante, mas que, há quase três décadas, representava uma verdadeira façanha para qualquer artista de carreira. Só que José Afonso, já então com 38 anos, não queria ser um artista, e muito menos de carreira. Isso mesmo, aliás, se percebia já nas suas canções, então marcadas por uma generosa pedagogia de libertação – e é bom não esquecer que várias das suas cantigas deste tempo foram criadas como um instrumento do seu trabalho lectivo. Apesar disso, porém, conseguem ser de uma intemporalidade que nos leva, hoje, a escutá-las com o prazer que só as grandes obras proporcionam. E é isso que faz desta reedição, mais do que um acontecimento histórico, um acontecimento cultural.
Temas como «Balada Aleixo» ou «Ronda dos Paisanos» – um hino antimilitarista em forma de canção de roda – ajudam a compreender por que é que, após a publicação deste disco, o cantor foi expulso do ensino pelo poder fascista no activo: se pensar era um perigo, questionar era crime contra a segurança do Estado. As outras cantigas, essas, surgem neste disco como o resultado de algumas experiências poéticas e musicais de Zeca inspiradas no mais puro lirismo tradicional. Uma prática que, aliás, nunca mais abandonou.
À lamechice rasteira em vigor, José Afonso contrapõe a beleza de «Canção Longe» ou do «Pastor de Bensafrim», a simplicidade de «Trovas Antigas» ou de «Altos Castelos», a expressividade comovente de «Minha Mãe» ou de «Elegia». Todas estas músicas são sobretudo o testemunho da sua vontade permanente de descobrir o que de mais genuíno existe no imenso baú da nossa memória comum, acordando o universo dos sentidos contra a filosofia reinante da indiferença.
«Baladas e Canções» é, por assim dizer, o último testemunho da fase amadora de Zeca Afonso. Impedido de leccionar, irá dedicar-se por inteiro à música e – quase apetece dizer que há males que vêm por bem – haverá então de criar algumas das mais belas canções da história daquilo a que Carlos Paredes, outro mestre generoso, chama a pequena música.
Que significado pode ter, hoje, ouvir estas (e outras) músicas que, há quase trinta anos, representaram tanto para tanta gente - eis uma pergunta que naturalmente se fará, neste tempo que alguns julgam ser o do fim da História, mas que, afinal, é apenas um intervalo para publicidade. Creio que a melhor resposta para esta e outras dúvidas está aqui, por inteiro, neste disco. Canção a canção, sem truques nem efeitos especiais.
Introdução à reedição em CD de Baladas e Canções, de José Afonso
Ed. EMI-Valentim de Carvalho | 1997