Uma vida de risco(s)

Uma vida de risco(s)

À medida que crescem e se tornam significativos (e significantes) para os mortais comuns, os artistas tendem a ser alvo – alternada, pontual ou concomitantemente, conforme os casos – dos mais nobres encómios, das mais vis atoardas e das mais desvairadas lendas.

Como o Relvas dispensa os primeiros e não merece as segundas, restam-nos as terceiras, que ainda assim serão as mais fiáveis, mesmo se, de acordo com alguns dicionários, lenda é uma «narrativa ou tradição, escrita ou oral, de coisas ou factos fantásticos, muito duvidosos ou inverosímeis» (sendo que nada do que de fantástico aconteceu na vida de Relvas é duvidoso, por mais inverosímil que pareça). Noutras definições, lenda é também o «indivíduo admirado pelos seus feitos, talento ou desempenho em determinada área», e nesse caso não restam dúvidas de que ele o é, por direito próprio e desde há mais de 40 anos. Na arte, como na vida.

Houve um tempo em que todos éramos felizes – e a semântica, aqui, é uma minudência: sim, a felicidade é um estado relativo e passageiro, a gente sabe; mas éramos, pronto. E foi por essa altura que o Relvas apareceu. Era pouco mais do que um catraio, e, depois de umas colaborações na Gazeta da Semana e no Fungagá, começou por fazer-se notar através de umas histórias publicadas no Tintim, a cujo responsável editorial os bonecos do jovem aspirante a artista caíram no goto. As histórias eram do Espião Acácio (o primeiro da vasta galeria de personagens inconfundíveis e inesquecíveis que Relvas legou à bd portuguesa) e o responsável editorial chamava-se Dinis Machado – que então ainda não tinha publicado o Molero, o romance português estruturalmente mais próximo da bd, mas isso é outra conversa.

Foi assim que tudo começou a desenhar-se, e nisto a lenda coincide com a história. Mas, pelo menos no que à minha parte diz respeito, esta é como que uma pré-história do Relvas. A história, a sério (a nossa, pelo menos), começa meia dúzia de anos mais tarde, em princípios da década de 80. Ele tinha regressado da Alemanha, por onde andou durante uns meses saboreando outros ares, e ambos frequentávamos os circuitos da perdição nocturna de Lisboa. Cruzámo-nos aí, e logo depois na redacção de um jornal, o Se7e, onde quase tudo era permitido e onde até havia uma página inteira para histórias aos quadradinhos (eu bem disse que éramos felizes!) onde Relvas pôde criar algumas das pranchas mais notáveis da obra que lhe conhecemos.

Foi, literalmente, o princípio duma bela amizade, que se estendeu pelo tempo, resistiu às distâncias e aos desatinos, e se mantém, firme e irrevogável, quase quatro décadas depois. Foi, também, para mim – e, disto, se calhar nem ele nem eu nos demos conta nessa altura – uma prebenda única: assistir, semana após semana (muitas vezes dia após dia, noite após noite), ao desenvolvimento de um processo criativo como o do Relvas é um privilégio a que poucos têm acesso.

Pelo traço de Relvas passaram a Violeta e o Carlos Starkiller, a Olga Punk, o Capitão Latinoamérica, o Irmão Lince, uma aranha chamada Mao Tse-tung, uma osga de nome Heidegger. E outros, alguns criados ao sabor das circunstâncias e da própria actualidade, acompanhando o ritmo semanal da produção. Tudo isto à mistura com alguns copos e boémia q.b., que o Relvas nunca foi de deixar para amanhã o que pode viver hoje.

Depois, o jornal mudou de rumo, e nós também. Vieram mais histórias, outros jornais, alguns álbuns, outras viagens. A obra, essa, consolidou-se a tempo de resistir a tudo: às tropelias do mercado, à ignorância dos editores, ao mau-feitio do autor.

E aqui chegámos. Agora, o Relvas já é mais do que lenda. Ele é uma referência – porventura a mais irreverente, com certeza das mais relevantes – fundamental para quem quiser conhecer a evolução da banda desenhada em Portugal nos últimos 50 anos. E se, apesar de tudo, é hoje mais fácil para um jovem artista criar e divulgar o seu trabalho, isso em muito boa parte se deve ao Relvas – ao talento dele, sim, mas sobretudo à sua persistência homérica e à intransigência perante a mediocridade que sempre o acompanhou. Porque, se ser artista em Portugal não é tarefa fácil, ser artista de banda desenhada é ainda mais difícil – por todas as razões que se conhecem, e até por outras.

O Relvas sabe disso, sempre soube. E pagou por isso, também, tal como pagou (e se calhar ainda paga) por não ser dado a venalidades e hipocrisias. Ele é o que é, sem máscaras nem artifícios, e isso é coisa que continua a incomodar muita gente. Mas é também por isso que gostamos dele, lhe aturamos os resmungos, e, agora, o celebramos.

Porque a história do Relvas se cruza, afinal, com as histórias de todos nós. Porque são elas (as nossas histórias) que constituem afinal a base para as histórias que ele cria, como só ele sabe, como só ele consegue. Haverá quem consiga fazer parecido, mas não sei se alguém o fará melhor. Seja como for, nunca ninguém fará o mesmo.

Relvas há só um, e é este. Aproveitem e desfrutem-no, longa e intensamente, porque há coisas e pessoas que são mesmo irrepetíveis. O Relvas é, seguramente, uma delas. E, para mim e para muitos, sem dúvida das mais importantes. Nazdrovia, então.

Catálogo da exposição Retrospectiva/Outra Perspectiva, de Fernando Relvas

Galeria Municipal Artur Bual, Amadora | 28 Out. a 12 Nov. 2017