Há coisas que não se explicam, limitam-se a acontecer. A minha súbita promoção à condição de opinante relativamente a este livro é uma delas. Em abono da verdade, eu nem sequer deveria estar aqui: mandar vir sobre um livro no contexto do próprio livro é matéria normalmente reservada aos amigos mais próximos ou pelo menos a quem conhece de perto as idiossincrasias do autor. E confesso que, de Daniel Abrunheiro, além do nome e de um ou outro texto publicado algures, nada mais conhecia. Até agora.
Sei que o Daniel é jornalista, tal como eu, e suponho que nos tenhamos cruzado alguma vez no trotoir informativo, mas pouco mais. Assim, repito, a minha presença neste espaço corre o risco de ser, se não abusiva, pelo menos algo descabida e porventura inexplicável. Mas garanto-vos que a culpa não é minha, como tentarei explicar já de seguida.
Não sei quando começou, para o autor, a aventura deste livro. Para mim, foi este Verão, quando, no pino do calor incendiário, recebi um recado do Manuel Freire, acompanhando uma mão cheia de prosas e a recomendação para que lhes desse a devida atenção. Por instinto, e porque sei que o Manel não é dado a vender gato por lebre nem a reverenciar imbecis, fiquei com a sensação que dali era capaz de sair prosa da boa, coisa cada vez mais rara nos dias fúteis que vivemos. Sinceramente, acho que não me enganei.
Num tempo em que se abatem inutilmente tantas árvores para dar à estampa as mais incríveis aberrações paraliterárias, sabe bem ler uma prosa tão escorreita, tão depurada e sobretudo tão honesta como a deste Daniel Abrunheiro. Que navega com igual à-vontade no registo poético de «Pomba» como no tom vagamente surreal de «Máscara», atento à realidade sem se tornar seu escravo, capaz de ordenar o mundo de trás para a frente sem que o mundo deixe de fazer sentido.
Estes textos de Daniel Abrunheiro revelam um autor que conhece bem o valor dos silêncios que tantas vezes se escondem por trás das palavras. E que sabe, tal como diz uma das suas personagens, que o ruído não é mais do que «o silêncio que não sabemos ler». Aprendamos, então. Um bom ponto de partida é essa «noite de homens-cantores», belíssima construção polifónica onde se misturam vozes diversas, umas mais familiares do que outras, mas todas elas possuídas da mesma força («anímica», diriam os tipos do futebol, que não são para aqui chamados) que nos permite identificar cada personagem com o seu outro lado - o lado mais real, mais humano e mais sincero de todos eles.
Quando leio, por exemplo, «Julio Iglesias dormindo numa Bedford azul» vem-me à memória o tipo angustiado que encontrei uma tarde, no estádio Santiago Barnabéu, em Madrid, preso na sua própria lenda de superstar, terrível lenda que não deixa espaço para a vida. E garanto-vos que o Julio Iglesias de Daniel Abrunheiro é muito mais verdadeiro do que aquele que durante anos nos venderam as revistas ditas do coração – e que, na verdade, estão muito mais próximas do intestino do que de qualquer outro órgão vital...
Tal como o seu Iglesias, Daniel Abrunheiro também vive longe do cloro das piscinas. Diz duvidar da criação literária, mas o que aqui nos dá é literatura da mais fina cepa. Afinal, como ele mesmo diz, «não é difícil perceber os outros, difícil é termos alguma coisa para lhes dar.» Daniel tem. E eu, que até agora a bem dizer não lhe conhecia mais do que o nome, fiquei cliente. E fico à espera de mais.
Eu avisei que esta espécie de posfácio era capaz de não ter razão de ser. Na verdade, quando as palavras dizem aquilo que nos diz este autor, o que se escrever a mais corre o risco de ser mero ruído. Garante Daniel Abrunheiro que publica este livro para ter alguma coisa de que se arrepender no próximo milénio. Pessoalmente, não acredito. Mas, como disse, eu nem sequer deveria aqui estar. A culpa, toda, é do Manel, que me meteu neste caldinho. Obrigado, Manel. E obrigado, Daniel: são tipos como tu que me fazem acreditar que ainda vale a pena continuar a escrever.
Posfácio a Cronicão | Gente do touro de Ouro | Noite de Homens-cantores, de Daniel Abrunheiro
Ed. Publicenso, 2003