Acabo de ler esta história, e apetece-me acender um cigarro. Não é politicamente correcto dizê-lo, e menos ainda fazê-lo: o higienismo e a lei, ou vice-versa, dizem que fumar mata. Claro que a vida também mata, e em meio século de existência ainda não conheci ninguém que lhe conseguisse sobreviver. Mas isso não é preocupação dos legisladores, empenhados que estão em conseguir que morramos todos cheios de saúde.
Pouco importa. Este aparente desacerto da prosa vem a propósito de mais uma ficção que Nuno Gomes dos Santos agora dá a conhecer em forma de livro. Um livro que é um prazer, e nos fala de prazeres, mas também de sentimentos – tantas vezes tão intimamente ligados aos prazeres – uns e outros, afinal, aquilo que de facto importa. É um livro que fala de pessoas e de coisas que dizem respeito às pessoas, como a vida. Que é frequentemente uma experiência sulcada de mágoas, mas ainda assim a única que vale a pena.
Deixo-me levar pelas palavras certeiras do Nuno, e gosto de ler o que leio. Sem surpresa, pois que vai para uma eternidade que lhe conheço o jeito e o estilo. Da história, porém, nada vou adiantar, que ela está já aí, por inteiro, nas páginas que se seguem. Ainda por cima, esta é uma história bem contada. E todos sabemos que por aí proliferam, na literatura como na vida, tantas histórias tão mal contadas. Felizmente, este autor é de outra escola.
Conhecemo-nos há muitas luas, estava eu de entrada na «profissão dominante» – como chamava ao jornalismo um nosso inesquecível mestre comum, o Fernando Assis Pacheco – e era o Nuno já um repórter rodado. Eu praticava ainda umas incursões furtivas na Faculdade de Letras de Lisboa, ele já levava anos de graduado em História. E já tinha história como músico e poeta, também, mas isso são outros filmes que não cabem no espaço necessariamente breve e eventualmente inútil de um prefácio. A verdade é que nos fizemos amigos no decorrer de uma experiência jornalística única, em busca da verdade a que julgávamos ter direito (e se calhar tínhamos) e que resultou ser, para o bem e para o mal, determinante nas nossas vidas.
O Diário, por onde então andávamos, era uma redacção de jornal como deve ser, envolta em fumo e sonorizada pelo teclar das velhas hcesar misturado com o retinir dos telefones, palavras calculadas e palavrões aleatórios, espertezas e sinceridades, afectos e cumplicidades. E onde eram sobretudo importantes os grandes companheiros que por ali havia, profissionais de quilate com quem foi muito bom partilhar momentos e palavras. Como em todos os lugares, também por lá andavam algumas manhas e uns personagens pouco atraentes, mas esse era um problema deles. O Nuno e eu preferíamos os que gostavam de rir.
Naquela casa de subúrbio onde se almejava abraçar o mundo, aprendemos muito daquilo que era essencial. E continuou a sê-lo, mesmo quando as dúvidas passaram a ocupar o espaço onde, durante muito tempo, habitaram as nossas certezas. Porque, convém dizê-lo, nós vimos de uma época em que as pessoas queriam ser felizes e os jornalistas sabiam ler e escrever. E mais: importavam-se com aquilo que escreviam, e eram capazes de lutar pelo que queriam escrever. Mas gostavam principalmente de viver, mesmo sabendo que viver faz mal à saúde e acaba invariavelmente por matar.
Foi no meio desta gente que eu vim parar como jornalista debutante, no final da década de 70, vindo de Ílhavo onde fora nado e criado. E data dessa altura a minha amizade com o Nuno Gomes dos Santos, uma amizade sobrevivente ao mudar dos tempos e às distâncias impostas pelas contingências do ganha-pão e outros imprevistos. E acima de tudo marcada por uma solidez de princípios que não se alteraram com as marés político-sociais das últimas décadas – coisa que não se pode dizer de alguns outros nossos amigos dessa época, os que estão hoje (não resisto a citar outra vez o Assis) «bandeados para a comarca de onde vem papel, mas papel a sério, sendo que vários deles até deputam, oh meu deus!»
Na vida fizemos percursos diferentes, mas que se cruzaram amiúde e que foram de alguma forma coincidentes em muitos aspectos. Partilhámos sonhos e vivências e prazeres e dores e medos e mais coisas que aqui não digo. Testemunhámos grandezas e misérias de conhecidos e desconhecidos, ficámos frequentemente aquém daquilo que ambicionávamos para nós e para o mundo. Mesmo assim conseguimos chegar aqui, olhar em volta e pensar que, apesar de tudo, valeu a pena todo o caminho já percorrido.
O Nuno tem uma qualidade que é também, provavelmente, o seu maior defeito: é um escritor e um homem sério, incapaz de trair amizades e de se vergar perante a iniquidade que alastra à nossa volta, manchando a liberdade que foi o nosso anseio, a nossa razão e a nossa paixão. É, numa palavra, um cidadão empenhado e vertical, e todos sabemos que uma postura assim incomoda e tem um preço, muitas vezes bem difícil de pagar.
Mas o Nuno é, como disse, de outra escola. Avesso a galanteios perante a facilidade, pouco dado a seguir o que ditam as modas da indústria literária, zeloso no tratamento da língua e a gramática, ele é também dos que acreditam que o mundo pode ser um bom lugar para viver sem que tenhamos de nos render à tristeza quotidiana (hoje mais frenética e pouco apagada, mas nem por isso menos vil) que nos enche de cinzento. A vida só se alcança quando se luta contra a vidinha, como diria O’Neill. E, dessa luta, o Nuno não se cansa. Nem descansa, nem desiste.
Há coisas que só fazem sentido quando vividas intensamente. Com alegria e com dor, se for o caso, sempre preferível à alternativa de uma existência asséptica, sem perigos nem emoções nem sentimentos nem marcas no corpo e na alma. Uma vida assim é uma coisa sem sabor, nem cheiro, nem nada. Definitivamente, não é para tal que o Nuno cá anda. É por isso – também por isso – que esta Reserva de Fumo é um livro que dá gosto ler e sentir. Intensamente, como devem ser vividos todos os prazeres.
Prefácio a Reserva de Fumo, de Nuno Gomes dos Santos
Ed. AC Manuel da Fonseca, Almada | 2009