Toy story

Considera-se uma pessoa «de afirmações, não de perspectivas» e por isso, em pequeno, nunca dizia «eu gostava de ser cantor», mas sempre «eu vou ser cantor». O destino fez-lhe a vontade e, aos onze anos já cantava, integrado no elenco de um grupo de teatro de Setúbal, a sua cidade natal. «Fui um péssimo actor, mas penso que na música as coisas funcionavam bem», conta.

Aos 17 anos apaixonou-se por Tina, a mulher com quem vive desde então. «Como sempre fui um homem de impulsos, fui para a Alemanha para casar com ela», conta. Ficou por lá 8 anos, e foi lá gravou o primeiro disco, mas assim que pode regressou à sua terra, determinado a fazer aquilo que foi sempre o seu sonho: «Nunca tive outra opção que não fosse a música: tirei um curso geral secundário de Administração e Comércio, ligado à Contabilidade, que ainda hoje não me serve para nada porque a única matemática com que me entendo é a matemática da música: o três por quatro, o quatro por quatro, o três por seis…»

É o António Ferrão. Ou, se preferirem, o Toy, um dos mais populares cantores portugueses actuais, e autor de centenas de canções que foram êxitos, tanto na sua voz com nas de Ágata, Tony Carreira ou Marco Paulo. Um homem que se revela frequentemente uma pessoa muito diferente daquela que é a sua imagem pública. Que até gosta de ler Garcia Márquez, Florbela Espanca, Fernando Pessoa ou Bocage. Que admira José Afonso e canta José Fanha. Com paixão.

Autores – Como é que o António Ferrão passou a ser o Toy?

Toy – Isso vem do meu tempo da escola secundária. Eu chamo-me António Manuel Neves Ferrão, e na primária era o Toninho. É preciso dizer que a minha mãe é a segunda mulher do meu pai e, como antes do 25 de Abril de 74 ele não pode voltar a casar, eu era considerado «filho ilegítimo». Daí eu ser António, como o meu pai, e a minha irmã ser Leonor, como a minha mãe: uma vez que não podíamos ter outros nomes, tínhamos um nome próprio igual ao do pai e da mãe. O «Toy» surgiu quando entrei para o ciclo: na escola e no bairro onde eu vivia havia mais Antónios, um era o Toni, outro era o Toninho. E eu era o Toy. Desde que entrei na puberdade que passei a ser conhecido e tratado por toda a gente como Toy. Mas quando comecei a travar discos, eu que nunca liguei nada a isso dos nomes artísticos, assinava António Ferrão. Até que, numa das poucas entrevistas de rádio que eu fiz – já nessa altura a rádio nos ligava pouco – fui ao programa do António Sala e da Olga Cardoso, o «Despertar». E tratavam-me por António Ferrão, as pessoas começaram a telefonar e a chamar-me «Senhor António Ferrão», e aquilo, com os meus vinte e poucos anos, soava-me muito mal! Então pensei: «Porque é que não hei-de usar o nome por que as pessoas me conhecem?» Falei nisso ao Henrique Amoroso, que trabalhava na Valentim de Carvalho e está muito ligado aos meus princípios, ele achou que soava bem e que também podia «funcionar» do ponto de vista comercial… Não sei se funciona ou não, mas a partir daí passei a assinar com esse nome…

A – Que designa o cantor popular que o Toy é, mas também o autor de sucesso…

T – A princípio, eu queria ser apenas cantor. Mas lembro-me de, por volta dos meus treze anos, quando estava no Teatro, o meu pai me ter dito que era importante cantar coisas feitas só para mim. E foi aí que comecei a fazer ali as minhas próprias canções, a ser autor do que cantava e fazia.

A – Até meados dos anos 80 viveu na Alemanha. Foi a música que o fez regressar a Portugal?

T – O que me fez vir da Alemanha foi o meu filho estar a fazer cinco anos e eu não querer que o meu filho fosse educado naquele país…

A – Não gostas da Alemanha?

T – Não. A Alemanha foi importante para mim num dado momento, para perceber outra cultura, outra sociedade, outra forma de vida. Foi boa para entender um bocadinho do pragmatismo dos alemães, que às vezes é preciso na nossa sociedade, e portanto é claro que foi importante passar por lá. Mas não gosto da Alemanha enquanto país, não gosto do frio a todos os níveis. Gosto muito de sair à noite, gosto muito do calor humano, e por isso a partir de três, quatro anos de Alemanha, queria vir-me embora. E a «desculpa» mais válida que arranjei para mim próprio foi que, se o miúdo entrasse na escola, ia ser mais difícil voltar: ele iria tirar um curso, eu teria de lá ficar muito tempo. E, por outro lado, já tinha escrito umas canções – aliás começo por ser conhecido em Portugal como autor e compositor…

A – Com temas que foram cantados por Marco Paulo…

T – Eu, na Alemanha, fazia algumas canções para mim e outras que enviava para cá. E o Mário Martins, que estava na Valentim de Carvalho e foi uma das pessoas importantes do início da minha carreira, escreveu-me a dizer que a editora não tinha condições para ter mais um artista compositor.tava no Teatro, o meu pai me ter dito que era importante ser autor da, mas que as canções tinham valor e que ia tentar incluí-las no repertório de outros cantores. E foram: três entraram num disco do Marco Paulo e outra num disco do José Alberto Reis.

A – Foram os teus primeiros sucessos…

T – Foram os meus primeiros quatro sucessos não cantados por mim. Isso e a primeira verba que recebi da Sociedade Portuguesa de Autores – 200 e tal contos de um ano de vendas desses discos – levaram-me a pensar que era possível vir para Portugal: se conseguisse fazer outra coisa qualquer, mais aquele acréscimo, era melhor do que estar durante dezasseis horas no torno a ‘dar o litro’. De modo que arranjei todas estas desculpas, e arranquei para cá. Vim em 1988, tinha 25 anos, e comecei a cantar nos bares, nas discotecas, nos carabés… E continuei a escrever.

A – E foi então que passou a ser músico a tempo inteiro.

T – Foi. Na Alemanha, eu era torneiro mecânico porque tinha de ter uma profissão para viver. Uma das coisas que considero importantes na minha estrutura de vida é que nunca pedi um tostão nem ao meu pai nem ao meu sogro. O meu pai deu-me a melhor coisa que me podia dar, que foi a educação. Tudo o resto, o que eu consegui materialmente, foi fruto do trabalho meu e da Tina, que foi sempre a minha parceira a todos os níveis: nós trabalhávamos imenso, para que pudéssemos chegar ao fim do mês e, além da renda da casa e das necessidades normais, pudéssemos comprar instrumentos, pagar horas de estúdio, ter aulas de música...

A – É na Alemanha que grava o primeiro disco?

T – O primeiro disco foi gravado lá e editado cá na Rádio Triunfo, Orfeu, ainda como António Ferrão. O segundo foi editado na Ovação, e o terceiro na Transmédia, pelo Nuno Rodrigues, já como Toy. Entretanto a editora faliu, e fui para a Discossete, onde estava a Helena Cardinalli – outra pessoa que foi importante no início da minha carreira – que gostou de uma gravação que eu tinha feito na Alemanha e decidiu editá-la, acrescida de duas canções que gravei cá, num estilo muito mais aproximado do gosto dela. O que me levou a começar a ser conhecido com um estilo musical que tinha muito pouco a ver com aquilo que eu estava a fazer na altura... Do que não me envergonho, e fá-lo-ia outra vez.

A – A sua música corresponde àquilo que quer fazer?

T – Faço muito mais hoje o que quero do que fazia ontem, mas muito menos do que vou fazer amanhã. Já estou muito perto daquilo que gosto mesmo de fazer. Eu trabalho por objectivos, e um dos pus a mim próprio foi acabar com a ideia de que a música ligeira não pode ter qualidade. Sempre me fez confusão que Portugal seja o único país do mundo que acha que a música ligeira é uma música menor. Depois comecei a aperceber-me de que não era música ligeira em si, que eram algumas pessoas da música ligeira… E, de facto, hoje já estou muito perto de fazer realmente aquilo que quero. Porque estou na música ligeira de qualidade, porque consigo fazer canções onde tenho sons tradicionais portugueses, como o da guitarra, misturados com sons europeus; porque dou importância às palavras, que não têm forçosamente de ser aquelas coisas a que nós estamos habituados ultimamente e que são pouco elucidativas do que é a cultura portuguesa.

A – O Toy nasceu e teve os primeiros contactos com a música nos anos 60, que foram um tempo de grandes mudanças em Portugal em termos músicas, nomeadamente com pessoas como o Adriano Correia de Oliveira ou o José Afonso – que aliás vivia também em Setúbal. Essas pessoas foram importantes para si?

T – Eu sou muito honesto: tenho muita admiração por eles, mas, como cantor, as minhas referências não eram as vozes dos cantores de Abril. Porque essas tinham uma riqueza tão grande de conteúdo, que a forma interpretativa não era muitas vezes o mais importante. Eu fui educado musicalmente a ouvir vozes como a Gigliola Cinquetti, o Nelson Ned, o Elton John. E, em Portugal, ouvia por exemplo o Tristão da Silva, o Francisco José, o João Maria Tudella, o Tony de Matos, que eram as referências da minha mãe. Eu estive com o Ary dos Santos num espectáculo em Setúbal, mas as minhas referências de voz não eram os diseurs. Musicalmente, nunca me inclinei muito para aí. Mais tarde sim, mas no sentido da importância das palavras que se cantam, da mensagem que se quer passar. Como autor, tenho referências em José Afonso, no Francisco Fanhais, no José Fanha – de quem, aliás, canto um texto no meu último disco. Mas pouco como cantor, sinceramente, as minhas referências são outras.

A – E qual é a vertente mais importante para si: a do cantor ou a do autor?

T – Ambas são muito importantes para mim, mas como me sinto melhor é como cantor. Porque a reacção do público ao trabalho é mais imediata, as pessoas estão ali ao pé de nós. Ao passo que, como autor, o feedback não é tão rápido...

A – Uma das coisas de que os autores e muita gente do público se queixam mais é da escassez de música portuguesa nas rádios nacionais…

R – Eu tenho dito e continuo a dizer que a política cultural em Portugal é uma merda. E a partir daqui é sempre difícil as coisas avançarem. E, note-se, eu sou de opinião que nós não podemos culpar os políticos de tudo – porque se a praia está suja não é a autarquia que a deve mandar limpar, somos nós que não a devemos sujar. Agora não posso é admitir que sejamos um país onde é preciso andar 16 anos a lutar por uma lei e, no final, ainda haja um partido político que não está de acordo com essa lei. Ainda há pessoas que acham que a música a portuguesa não deve passar na rádio, o que é uma coisa extraordinária! O que pergunto é: qual é o critério que algumas rádios têm para não passarem música de grande qualidade que se faz em Portugal. Onde é que estão os ministros da Cultura, os secretários de Estado, esses senhores todos, que estão a ganhar dinheiro para defenderem os seus interesses em vez de defenderem os interesses do país? Se não tivermos uma política cultural que se preocupe com a música, que é a primeira forma de comunicação e a mais universal, então deixamos de ser quem somos. Eu não estou contra estarmos na União Europeia, mas temos de manter a nossa identidade. Os franceses têm as valsas, os espanhóis têm o flamenco… E nós, que temos a música que temos, não a passamos na rádio? É grave. E, depois, é claro que as pessoas falam cada vez pior português, que é uma das minhas preocupações. Eu lembro-me que, quando estive na Alemanha, fazia questão de ler muito, em português, para não desaprender a língua…

A – Ainda lê muito?

T – Agora menos, confesso.

A – Portugueses?

T – Poesia portuguesa, sim. Gosto de Fernando Pessoa, gosto muito de Florbela Espanca, e fundamentalmente daquele que, na minha opinião, é o maior poeta português, e que também era de Setúbal, o Manuel Maria Barbosa du Bocage, que para mim está à frente de Camões. Também leio outra literatura, gosto muito de Gabriel Garcia Márquez, gostei muito do Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago.

A – O Toy vê o futuro com optimismo?

T – Com a política dos últimos anos, por muito optimista que se seja ficamos sempre um pouco de pé atrás. Eu sou muito positivo, nunca digo que vou tentar, digo sempre que vou fazer. Mas é complicado. Nós temos um povo que, num concurso de televisão, votou numa «coisa»! Eu costumo dizer, em jeito de piada, que um país onde o José Castelo Branco é idolatrado, onde há um primeiro-ministro chamado José Sócrates e um presidente da República como Cavaco Silva, não me parece ser um país com futuro… Não é que as pessoas não tenham as suas qualidades, quem sou eu para criticar os outros? Mas a verdade é que cada vez são mais os que se deixam levar muito pelo que a televisão mostra, como se aquela fosse a única realidade. E não vejo forma de combater isso. Afinal, a televisão é dominada pelos grandes capitalistas, e o capital continua a ser o grande poder.

A «parte um» da história

Chama-se António Manuel Neves Ferrão, mas toda a gente o conhece por Toy. Nasceu há 43 anos, feitos em Fevereiro, mas ainda se considera apenas na «parte um» da sua história. A verdade é que começou muito cedo a perceber que gostava de música. O pai era alfaiate na cidade do Sado e tocava em conjuntos amadores nos anos 60.

«Eu acompanhava-o sempre, nos ensaios. E lembro-me de aos cinco anos ter subido ao palco, cantar três músicas e ter sido um êxito!» Depois, tudo aconteceu muito rapidamente. Com onze anos foi convidado a integrar o grupo de teatro da Sociedade Musical Capricho Setubalense, e fez durante vários anos teatro de revista. «Havia uma orquestra, que era uma coisa fantástica, e aprendi a lidar com o público, a lidar com os músicos, com as pessoas do teatro. Cresci fundamentalmente nisto.»

Entre os 17 e os 25 anos viveu na Alemanha, onde trabalhou como torneiro-mecânico, formou uma banda de new wave e um conjunto de guitarras de Portugal, foi vocalista de um grupo de jazz. Ali gravou também o primeiro disco, a que chamou «Dias de Paz». Após o regresso a Portugal, em finais dos anos 80, publicou «Mulher Latina», e pouco tempo depois participou no Festival RTP da Canção, onde obteve o terceiro lugar e o prémio de interpretação.

Cantor, compositor, produtor e arranjador, é autor de mais de duas mil canções interpretadas por Marco Paulo, José  Malhoa, Ágata, Tony Carreira, além de muitas canções infantis. Também assinou a banda sonora da telenovela «Olhos d’Água» e tem vários discos gravados, de que se destacam «Anjo Vingador», «Champanhe e Amor» «Estupidamente apaixonado», por exemplo. Quase vinte anos depois de ter regressado a Portugal diz que está prestes a conseguir fazer apenas a música de que realmente gosta.

Revista Autores - Jan./Mar 2006