Da pirataria como desporto nacional

Da pirataria como desporto nacional

Nasceu em Angola, em 1943, mas é de Portugal que fala a sua música. Um encontro com o poeta Daniel Filipe, aos 19 anos, determinou-lhe o futuro. E, a partir de Paris, onde viveu exilado durante dez anos por recusar fazer a guerra colonial, construiu uma obra de referência na história da canção política portuguesa.

Regressado após a Revolução dos Cravos, Luís Cília continuou o seu caminho, discreto mas de grande qualidade, sem nunca abdicar de uma enorme exigência estética. Musicou poemas de Eugénio, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira e gostava de fazer o mesmo com Herberto. Já não canta, mas continua a compor, com rigor e método, para teatro, cinema e bailado. Dono de um fino sentido de humor, permanece atento ao mundo que o rodeia. E, mesmo pessimista por natureza, ainda não perdeu a esperança num mundo melhor.

Autores – Nos últimos anos tens vivido com alguma discrição, artisticamente falando: continuas a compor, mas praticamente abandonaste os palcos. O que é que tens feito? Por onde tens andado?

LC – A transição para a composição foi feita de uma forma pacífica: eu comecei a ter encomendas para fazer músicas para bailados, e um bailado tem uma duração que representa muito tempo de trabalho. Por isso foi uma coisa natural, comecei a dedicar-me mais à composição. Isto a par com o eu já não ter muita paciência para aturar o que eu chamava “os gremlins”. Porque quando eu comecei a fazer discos – os primeiros foram no Chant du Monde, em 64 – habituei-me a falar com os produtores, com a equipa, dizia-lhes que tinha um disco preparado, eles marcavam o estúdio, eu gravava, e depois eles tinham conhecimento do disco. Havia uma relação de confiança entre as editoras e os seus artistas e sei que hoje já não é assim, porque se instalaram uns “gremlins” que querem ouvir antes e dar opiniões e eu, de facto, não tenho paciência para isso. Ou têm confiança ou não têm.

A – Sobretudo ao fim dos anos que que já tens de música…

LC – Sim, e não é só isso. Eu lembro-me de que o Léo Ferré, numa das vezes que esteve cá, me disse “Ó Luís, se eu começasse hoje, não tinha safa nenhuma”. O ambiente é totalmente diferente, acho que é a aculturização que vai no caminho geral do resto, não é? Se nós pensarmos que o primeiro disco do Jacques Brel vendeu cinco exemplares… Havia uma confiança no artista, e era com o tempo que ele conseguia arranjar o seu público, que eram 100, depois 200, e depois 500. Havia tempo, e hoje já não há tempo. Quer dizer, fazem um disco com um jovem, e se ele não vende a quantidade que eles querem, pronto, dão-lhe um pontapé. E de facto isso não faz com que um artista desenvolva uma personalidade própria…

A – Se calhar, também porque cada vez há menos público e mais consumidores…

LC – O público, no fim, acaba por nivelar cada vez mais baixo. Por exemplo, as televisões: eu estou-me nas tintas, e acho que as televisões privadas têm todo o direito de fazer aquilo que quiserem porque o dinheiro é delas, mas já as televisões públicas, que funcionam com o dinheiro dos contribuintes, deveriam ter outro tipo de responsabilidade e não ir atrás das audiências. Estes concursos de cantores que se fazem nas televisões são um fenómeno que prejudica muito a música portuguesa: o que lhes interessa é o tipo que imite o Michael Jackson ou a Madona e quanto melhor imita mais eles gostam, em vez de esses concursos serem para procurar novos talentos. E talento é pessoas que tenham alguma coisa a dizer. De certeza que há por aí muitos jovens hoje que têm personalidade própria e talento, mas se querem fazer as coisas deles têm os caminhos todos fechados.

A – Tendo em conta as grandes diferenças que existem entre a nossa vida actual e a de há 30 ou 40 anos, parece-te que agora é mais fácil ou mais difícil fazer um caminho na música?

LC – Bom, a nível técnico, hoje há mais meios. Eu lembro-me (e não quero estar para aqui a coçar a barriga) de que fui o primeiro tipo a fazer recitais, e os recitais eram todos à nossa custa. Quer dizer, era eu e a Nina, a minha mulher, que organizávamos, e depois havia, por exemplo, uns amigos no Porto – o [Avelino] Tavares, o João Manuel Fernandes, e outros – que alugavam as salas, e depois eu ia lá cantar e ficava com aquilo que dava a sala. Nunca dava grande coisa: dava para pagar aos músicos, a sala, a estadia… E, hoje, penso que há uma rede de salas no país, isto sob o ponto de vista técnico. Agora, não sei se há vontade das câmaras municipais de utilizar essas salas de uma forma em que arrisquem. E quando digo arriscar é trazer gente que à primeira vista não vai ver determinado espectáculo. Eu tenho muito respeito pelo Toni Carreira, acho que ele é bom dentro daquilo que ele faz, mas claro que para uma câmara é muito mais fácil contratar o Toni Carreira, que sabe que lhe vai encher a sala com o seu público assegurado, do que trazer um jovem que começa agora e que, claro, não vai encher a sala. Mas isto é um trabalho a longo prazo, pois se um serviço cultural de uma câmara criar laços de confiança com a sua população, essa população começa a confiar nos espectáculos que a câmara dá, e ao contrário. Eu costumo dizer que, na cultura, a esquerda e a direita unida jamais serão vencidas…

A – Vejo que manténs o teu grande sentido de humor. E continuas também a olhar muito criticamente para tudo o que te rodeia…

LC – Bom, do ponto de vista da canção, estou um bocado afastado. Mas costumo encontrar-me com colegas do mundo da canção, de quem gosto muito, e sei que isto não está fácil. Naquilo que eu faço, que é música para imagem, também não é fácil, mas eu vou fazendo uma música para um filme, uma música para o teatro, e tal. Também já desisti de comprar o Ferrari, portanto já me habituei à ideia…(risos) E não é só em Portugal, quando vou a França e vejo a televisão, aquilo é uma tristeza! Toda aquela pujança que tinha a canção francesa acabou. Hoje vêem-se alguns tipos a cantar que se mudarem a letra para espanhol ou para alemão é a mesma coisa, aquilo não tem personalidade nenhuma…

A – É a normalização, também nas artes…

LC – A mundialização, como se costuma dizer, e há tipos que gostam disso – eu acho horrível. Mas a canção francesa, que era uma canção com personalidade própria – como, de resto, a canção portuguesa: num pequeno país como o nosso tinha, nas suas variantes, uma personalidade bastante forte. Desde a canção de intervenção – tipos como o Zeca, o Fausto, o Zé Mário, o Sérgio, o Vitorino, o Manuel Freire, e outros – são pessoas com um estilo muito diferente, com uma personalidade muito forte e de facto com qualidade. E noutro tipo de canção havia músicos muito bons: o José Cid, o Paulo de Carvalho, são tipos que fazem muito bem o que fazem. Hoje há uma tentativa, pelo menos a nível oficiosos, de travar todo esse movimento, não dar meios para que a nova geração conheça esse tipo de trabalho.

A – Lembro-me de que, há uns anos, numa entrevista que fizemos, tu dizias que Portugal era um país poucochinho…

LC – E continua. Continua poucochinho porque é um país muito virado para si mesmo: por um lado, é um país de novos-ricos, têm todos a mania que vão comprar a gravata a Badajoz. Têm uma gravata e dizem: comprei em Espanha, comprei em Londres… Outro dia vi uma entrevista de um político que só compra sapatos em Londres. Isto é a saloiada.

A – Até porque temos excelentes sapatos em São João da Madeira.

LC – Os melhores sapatos. Também o famoso mármore de Carrara vem do Alentejo, a maior parte dele… Por outro lado, é um país pequeno, que vê a curto prazo, que não investe (eu penso que o português investe 50 cêntimos para ganhar um euro) e na cultura é a mesma coisa, não há investimentos. E quando há investimentos, há a inveja nacional. Como quando houve uma encomenda para uma obra do Emanuel Nunes, que eu ouvi e gostei muito, o que houve para aí de combate “porque se gasta muito dinheiro”, de tipos que passam a vida a dizer que não se investe na cultura portuguesa. Claro que não se pode encomendar uma ópera com pouco dinheiro. É esta dualidade que é uma mentalidade um bocado mesquinha. Em certos aspectos evoluiu bastante, mas ainda há certos meios…

A – É uma herança do salazarismo? O Salazar ficou na cabeça das pessoas?

LC – É, tudo isto é pequenino…

A – Num certo sentido até o nosso fascismo foi pequenino…

LC – Claro. Até se dizia que em Portugal havia uma «ditamole»…

A – A tua actividade é hoje sobretudo de composição, muito para filmes e teatro. É fácil um autor viver assim?

LC – Bom, eu tenho de ganhar um certo dinheiro, porque invisto no aspecto tecnológico, que está sempre a evoluir. Por outro lado, saio pouco de casa, e há muitos contratos que nascem por aí no “social”… Portanto não posso dizer que tenha muitos contratos, mas também não sou um gajo que goste de se chatear muito, e a partir do momento em que tenha trabalho mais ou menos regular, um ou dois filmes por ano… Até agora, nesse aspecto, não me posso queixar.

A – E das cantigas, não tens saudades?

LC – Eu continuo a seguir o trabalho dos meus colegas…

A – Falo de ti. Não tens saudades de cantar, de fazer canções?

LC – Eu não sei, acho que houve uma vez uns arraiais e fogo-de-artifício, eu até pensei que fosse por eu ter abandonado a actividade canora (risos). Quer dizer, foi uma escolha, mas de facto pelas características que eu tinha – o pequeno recital, a pequena sala – era difícil sobreviver. O trabalho que eu fiz está aí, tenho muito orgulho em tê-lo feito. E de resto houve um professor no Alentejo, Leonardo Verde, que eu nem conhecia, e que hoje sabe mais de mim do que eu…

A – Foi ele quem fez o teu saite, luiscilia.com…

LC – Pois, ele tem procurado, é o responsável pela divulgação que vai tendo o que eu fiz. As músicas, sobretudo, porque de vez em quando há pessoas que perguntam. Claro, eu gostaria de continuar a desenvolver determinado tipo de trabalho, como o disco que fiz sobre o Eugénio de Andrade, ou como o que fiz sobre o David Mourão Ferreira ou o Jorge de Sena. Por exemplo, gostava de fazer um disco sobre a poesia do Herberto Helder, teria outras características, mas hoje é completamente utópico, penso eu. Nem eu tenho paciência para depois andar por aí à procura de editora. Porque, como é lógico, seria um disco minoritário.

A – Há uns anos, não muitos, foram reeditados os teus primeiros discos em CD, pelo menos parte deles…

LC – Foi o Moshe Naim, em França, que fez um pequeno apanhado dos discos que eu fiz para ele. De quatro discos fez um CD, é de resto o único CD que existe, mas é só daqueles discos. Aliás, no ano passado, eu comprei todos os discos que fiz em França – os direitos e os masters, que estão aí no armário – talvez um dia haja possibilidade de editá-los. Eu gostava de ter os discos que fiz cá, mas isso é um bocado complicado…

A – Eu ia perguntar-te precisamente sobre isso. Os discos que fizeste cá não saem em CD porquê?

LC – Neste momento, salvo um – o «Resposta», que é da EMI – todos os discos pertencem à editora do Nuno Rodrigues.

A – E nunca foste contactado para editar?

LC – Ele já me telefonou. Só que, não é que eu agora tenha a mania das grandezas, mas acho que estar agora a editar umas quantas canções num CD… Não estou muito interessado nisso. Um dia, para editar, era uma caixa com tudo. Porque a minha actividade na canção foi evoluindo. Acho que não tem sentido pôr uma canção de um disco dos anos 60 e depois pôr outra dos anos 70, pôr um poema do Eugénio de Andrade e depois pôr outro…

A – Podia ser por discos, por exemplo: o “Marginal”, o “Contradições”…

LC – Pois, não sei. Mas também nunca me ocupei disso. Em relação aos discos de França, o Chant du Monde tinha alguns, que passaram para a Harmonia Mundi quando o Chant du Monde acabou. Eu contactei-os, mas eles até já nem sabiam dos masters do primeiro disco. Acabou por ser o Tavares que, no Porto, encontrou um senhor que tinha editado o primeiro disco e que me deu esse master. E como o Moshe Naim também acabou com a actividade, também me vendeu os masters. Portanto, os de França, eu tenho garantido que são meus, e como tal eu sinto-me no direito de fazer discos piratas, o que é uma coisa genial. Eu faço discos piratas meus, quando alguém quer um… O que é um luxo (risos).

A – Estou a ver. Qualquer dia temos de falar…

LC – De resto, devo muito ao José Fortes, que para além de ser um técnico de som extraordinário a quem todos nós devemos imenso, fez-me o favor de passar o vinil para CD com uma extrema qualidade, e que me permitiu preservar o conteúdo dos discos.

A – E se calhar melhorar…

LC – Não houve masterização, só transcrição. O José Fortes não me pôs a cantar como o Paulo de Carvalho (risos).

VT – O José Fortes também tem essa qualidade. Sabe ver as características de cada músico.

LC – Mas eu agora só me preocupei em ter os discos em CD, porque de vez em quando, mesmo através do site do Leonardo Verde, há pessoas que contactam. No outro dia foi uma senhora do Uruguai, que é professora e que tinha os meus discos, mas os tinha perdido, e eu enviei-lhe os CDs que ela pediu.

A – Há pouco, falaste no investimento em equipamentos. Tu foste sempre um tipo atento às tecnologias e à evolução tecnológica dentro da música. Lidas bem com isso?

LC – Sim, mesmo quando estava em França. Eu estudei composição, portanto pude ouvir as técnicas da música electro-acústica, o Pierre Henri… Isso era como ouvinte, claro. Mas depois, quando cheguei cá, comecei à procura dos sintetizadores – o célebre mini moog, que fui buscar a França. Tinha outro sintetizador, que até foi o Jorge Peixinho que depois ficou com ele. Eu sempre me interessei e em alguns discos cheguei a tentar, numa faixa pelo menos, pôr uma música que tivesse algo de experimental, mas não acho que isso tenha interessado muita gente. Mas sempre me interessei pela tecnologia.

A – E agora com os computadores e a internet… Dás-te bem com esse universo?

LC – Vou vendo, sobretudo. Como trabalho muito em música por computador, estou sempre a receber informação de novas coisas que aparecem, e quando tenho dinheiro vou comprando, porque isto não pára. Essa também é a função dos construtores de computadores: é sempre fazer um que daqui a um ano já está obsoleto.

A – É a lógica da sociedade de consumo…

LC – É inacreditável, mas eu fiz a produção de um disco da Né Ladeiras, o “Corsária”, que foi feito com um computador Atari que tinha um mega de memória. E por acaso até gosto bastante desse disco, e claro, da voz da Né Ladeiras. Foi feito com a Transmedia, e ali até há coisas experimentais. Hoje era impossível.

A – Hoje já nem uma “pen” tem um mega…

LC – Claro, claro, é a evolução das coisas. Eu fui evoluindo com a tecnologia.

A – Não és dos que têm receio de que a tecnologia possa acabar com a música? E aqui estou a falar mais da difusão e dos suportes que estão a mudar…

LC – Estás a falar da pirataria. Olha, há uma frase do Herbie Hancock que uma vez li, em que ele respondia a uma pergunta sobre os sintetizadores. Dizia ele: Olhe, você compra um machado, e um machado pode servir para cortar lenha para lhe aquecer a casa, mas também pode servir para matar o vizinho. Quer dizer, os sintetizadores, a música por computador é como tudo o resto: eu tenho um programa de composição mas ele só transmite o que eu lhe meter dentro.

VT – Naturalmente, a máquina não dispensa o criador.

LC – Por outro lado, quando faço uma obra orquestral para um filme, o meu sonho era ir para um estúdio com uma orquestra e tocar, mas isso era praticamente o orçamento do filme. Nós também temos de jogar com os meios financeiros que há e isto hoje está muito evoluído. Um bom pianista não se substitui, ou um violinista, e eu sei o que eu posso ou não fazer dentro do meu trabalho. E é preciso ter essa a noção: se eu preciso de fazer um tema com um pianista solista, tenho de contratar um pianista, pois há todo o lado humano que o computador não alcança.

A – Por outro lado, a divulgação e os suportes dessa divulgação hoje são completamente diferentes, o que está a gerar muitos problemas e a obrigar-nos até a repensar a própria gestão dos direitos de autor.

LC – Isso devemos à piratagem, que é uma coisa em si horrível. Aliás, eu penso que mesmo dos tipos que falam contra a piratagem não há nenhum que uma vez ou outra o faça. Eu sou muito amigo do Daniel Viglietti, e no outro dia mandaram-me um disco dele pela internet. Mas esse disco já não há. Quando houver, eu compro o CD, que tenho o vinil. Agora, há tipos que fazem da piratagem um desporto nacional. Esses tipos são uns vigaristas e desonestos e sobretudo é gente que não pensa no artista como um profissional. Porque no dia em que deixarem de pagar o salário no fim do mês, ele não gosta. É a mesma coisa para um artista. Se ele deixar de receber os seus direitos de autor, deixa de receber o seu salário. É essa a maneira do artista ganhar a sua vida. O que eu acho é que esta história da piratagem se transformou num abandalhamento.

A – E resolve-se como?

LC – É muito complicado. Há uma palavra de que não gosto mesmo nada, que é repressão, mas há-de haver uma maneira – ou através dos próprios saites, dos construtores de computadores, dos fabricantes de DVD e CD – de haver uma parte que fosse paga às sociedades de autores dos diversos países. Claro que também se põe o problema de gerir isso, mas de facto tem de haver um meio de fazer com que os autores sejam pagos pelo seu trabalho.

A – Pois, e muitas vezes as pessoas esquecem que este é o trabalho dos autores.

LC – É um trabalho e há autores que só vivem disso. As pessoas por vezes não pensam no problema do intérprete e do autor. Se o intérprete faz um disco, embora a maior parte das vezes não seja bem pago, ele tem uma percentagem sobre as vendas dos discos, enquanto o autor tem os direitos de autor dessas músicas. E muitas vezes, o autor acaba por não ver um chavo. Mas esse é um problema complicado e penso que não vai lá com pezinhos de lã. E há outra coisa, e há muita gente que protesta a nível mundial: o preço dos discos é muito elevado, penso que se os discos tivessem um preço mais acessível, e sobretudo se o IVA, que agora ainda subiu mais, fosse menos elevado…

A – Pelo menos que fosse igual ao dos livros…

LC – Pois. Acho que isso criaria um público maior para a compra dos discos. E também não resolve nada ter discos caros a Warner está na falência.

A – Ao fim destes já mais de 40 anos na música, olhando para tudo o que fizeste, há alguma coisa de que possas dizer que te arrependes? Ou que farias de outra maneira?

LC – Eu fiz os discos com aquilo que sabia na altura. No meu primeiro disco, em 1964, eu gravei 16 canções numa tarde. Com a guitarra, que às vezes até está desafinada… E até há uma história: eu estava a gravar e quando começava a cantar ouvia-se um barulho no estúdio, e parava-se a ver de onde vinha. E então, o barulho era a minha perna que tremia tanto que o banco batia no chão (risos). Mas é um disco pelo qual tenho carinho porque foi feito naquela altura, com os meios que eu tinha. Há canções desse disco de que ainda hoje gosto, que acho que não são más. O “Sou Barco”, por exemplo. O Paco [Ibáñez] gosta muito dessa canção, até a cantou quando esteve cá, no espectáculo da Culturgest. Eu fui fazendo discos consoante a minha evolução – como guitarrista, tive lições de guitarra clássica… E nunca gostei do estúdio, quando entrava num estúdio queria logo ir-me embora. Portanto há erros que cometi, mas fazem parte da altura. E acho que, se hoje refizesse aquilo, já não teria a espontaneidade que tinha na altura. Está ali – com os seus erros, muitas vezes com falta de qualidade, com as suas lacunas, mas pronto, é um testemunho do trabalho que fui fazendo ao longo dos anos.

A – De resto, tiveste sempre uma postura muito própria, que te valeu algumas incompreensões – para não dizer inimizades – antes e depois do 25 de Abril…

LC – Não vejo razão para inimizades porque, até me considero um bom rapazinho. Nunca, em nenhuma entrevista, disse mal de um colega. Mas nunca tive muito jeito para o marketing. Quando vim de França, podia ter chegado cá e ter feito o papel do pobre exilado que sofreu muito, mas eu não acho que tenha sofrido muito em Paris, até foi onde me desenvolvi culturalmente. Paris foi para mim uma escola de vida. E em relação a outras pessoas que estavam cá e que estavam presas até era um privilegiado. Achava um bocado até de muito mau gosto aqueles tipos que chegaram cá e tiraram benesses dessa lamúria do pobre exilado. E sempre distingui duas coisas: uma era a minha faceta política, de compromisso partidário, outra era a minha actividade cultural e musical. E isso criou algumas inimizades porque eu não alinhava em grupos, nesse aspecto.

A – E depois dizias algumas coisas que na altura podiam chocar algumas almas. Estou a lembrar-me de quando disseste que o Alfredo Marceneiro era um cantor revolucionário…

LC – Eu disse isso, e lembro-me muito bem, no 28 de Abril de 74 ao jornalista Mário Contumélias, para uma revista que se chamava “O Cinéfilo”. Porque eu cheguei cá logo a seguir ao 25 de Abril e fiquei muito chocado com a guerra contra o fado, que o fado era fascista e tal… E dei essa entrevista e disse que considerava o Marceneiro um cantor revolucionário, não só porque o considerava – porque revolução não é só pão que rima com patrão e com opressão, uma canção de amor pode ser revolucionária – como também era uma provocação a esse estado de espírito vigente. E claro, isso não foi uma boa publicidade na altura. (risos) Acho que sempre tive um espírito muito crítico e depois levei porrada de um lado e de outro, mas isso faz parte da vida.

A – E não pareces nada arrependido disso…

LC – Não. No outro dia, o Leonardo Verde recebeu um mail de um senhor da Bélgica – e isto agora não é outra vez uma provocação – a dizer que considerava o “Lulu do Intendente” a melhor música portuguesa, e que só agora é que tinha descoberto que eu era o autor da música. E a mim dá-me prazer que aquela espécie de romance – que até pode ser cantada em fado, e que acho que tem piada, na linha de certo tipo de canções do Brassens, naquele tom crítico – que haja uma pessoa que goste. No fundo são canções actuais. E não houve muita gente a fazer aquilo.

A – E agora, o que vais continuar a fazer?

LC – Agora, estou à espera de ganhar o euromilhões no próximo domingo (risos). Bem, todos os dias, às nove e meia da manhã estou à frente do computador – ou a compor quando tenho uma encomenda, ou a continuar a minha busca de experiências. Tento manter uma certa disciplina. E aprender, e ouvir coisas. Todos os dias ouço música de todos os géneros, compro bastantes discos de música contemporânea. Ou então, ouço canções. Tento manter-me alerta. E estou à espera que isto melhore um bocado e que todos tenhamos mais trabalho.

A – Voltar às cantigas está fora de hipótese?

LC – De momento, sim. Depois, qual é a hipótese que eu tenho? Fazer uma amostra e levá-la às editoras? Não tenho nenhuma paciência para isso e portanto não estou a ver… Estou a trabalhar, com o Mário de Carvalho, numa ópera a partir dum texto dele. É um projecto que andámos a ruminar durante anos, ele é um escritor de que gosto muito e sinto-me muito honrado por fazer este trabalho. Se depois vou conseguir apresentá-lo é outro filme.

Revista Autores - Abr./Jun. 2011