Fez tudo ao contrário das regras para a gestão de uma carreira artística, e deu-se bem. Diz a biografia que «assumiu os seus defeitos, as suas fragilidades, seguiu o instinto de se perder na estrada, empolgou-se com a noite e excedeu-se nos consumos.» Ele próprio acha que «enquanto houver estrada pr’andar a gente vai continuar». E continua. Chama-se Jorge Palma, e está tudo dito.
Há uma espécie de karma, até agora de boa aparência, que nos envolve de cada vez que me sento à conversa com Jorge Palma: começamos e acabamos inevitavelmente à volta de uma qualquer degustação, sólida ou líquida que nós não somos de cerimónias. O que nem sempre dificulta a prosa, mas dá-lhe por regra um sabor particular.
Porque este homem não é um artista vulgar. A arte e a vida confundem-se nele de tal modo, que por vezes não se sabe qual imita qual. Por isso uma conversa pode ser em si mesma uma história. Como esta, que marcámos para o fim da tarde e começámos já passava das 11 da noite, ao sabor da divagação entre pedaços soltos de memórias. Com Jorge e a sua vida. E a sua arte, portanto.
Que ninguém se espante, por isso, se o diálogo soar por vezes a monólogo e as falas de entrevistador e entrevistado se confundirem. Há dias assim, façam o favor de desculpar. E noites também. Como aconteceu neste Verão, a 15 de Julho, quando o Jorge juntou num concerto em Lisboa grande parte dos muitos amigos que fez nos últimos 40 anos.
Foi um concerto histórico, porque afinal não é qualquer um que reúne, duma assentada e no mesmo palco, gente como o Fausto e a Cristina Branco, Sérgio Godinho e Mariza, Adolfo Luxúria Canibal e os Tocá Rufar, Laurent Filipe e os Gaiteiros de Lisboa, Rui Reininho e J.P. Simões. O Jorge conseguiu porque é quem é, e a gente gosta que seja. Mai’nada!
Sorte
Acende mais um cigarro, irmão / inventa alguma paz interior / esconde essas sombras no teu olhar / tenta mexer-te com mais vigor / abre o teu saco de recordações / e guarda só o essencial / o mundo nunca deixou de mudar / mas lá no fundo é sempre igual. [D. Quixote foi-se Embora, in CD ‘Norte’, 2004]
Nos dias de hoje, o homem de que vos falo canta assim. É o mesmo que uma vez, já lá vão mais de vinte anos, respondeu sem pensar muito: «A vida é como um supermercado, onde nós levamos aquilo de que precisamos, mas também muita coisa que não queremos.»
Agora, com 59 anos cumpridos no bilhete de identidade, Jorge Palma reconhece que a vida não lhe foi madrasta:
«Tenho tido sorte», diz. «Tenho podido fazer aquilo que me apetece, com as pessoas que me apetece. E o pessoal gosta de mim. Porque eu sou um gajo directo, espontâneo. O pessoal gosta de mim…»
Pois como poderia ser de outra maneira, sendo ele não apenas o homem que se sabe, mas também o músico português que mais facilmente atravessa e atinge as várias gerações? Jorge sorri, meio tímido:
«Estás a pensar no Sérgio Godinho…»
A custo, acaba por aceitar a evidência:
«Eu falo uma linguagem que as pessoas percebem. E depois, num espectáculo, de repente troco o alinhamento, porque ouço uma ‘boca’, alguém que me pede um tema… Isso é a minha maneira de estar em palco: estou ali, estou a viver um bom momento da minha vida… Eh pá!, isso ninguém me tira: estou com um trio, com um sexteto, estou com a minha equipa, e faço o que me apetece…»
Autenticidade tem sido desde sempre uma a palavra-chave do universo de Palma e reflecte-se nas canções que cria, e no modo caloroso como o público as acolhe. Por isso mesmo, hoje, sabe que é «um privilegiado». Mas nem sempre foi assim: «Nos anos 80 fiz uns discos de que gostei: o ‘Acto Contínuo’, ‘Asas e Penas’, foi a altura do Deixa-me Rir… Só que eu não estava na moda…»
Para compor o fim do mês, fez «traduções técnicas, do francês e do inglês, para uma engenheira que é a avó dos meus filhos», conta. «Já que eu até tenho jeito para línguas, era uma maneira de ganhar dinheiro dignamente, em vez de ir gamar as caixas das esmolas.»
Aprender
Não consigo dormir / perdi a noção do tempo / e sinto fogo a alastrar nos meus pulmões / Teria valido a pena / se ao menos os que eu vi partir / calados, perdidos, exaustos / conseguissem encontrar o que resta da verdade / Noites longas de aventura / a rir e a ferrar a brasa da loucura / nos olhos da razão / Deixem voar este sonho / não me venham mais bater à porta. [Deixem voar este sonho, in ‘Com uma Viagem na Palma da Mão’, 1975]
Jorge Palma é o sobrevivente de uma era que já se extinguiu, mas é também o porta-voz de um tempo que ainda não chegou. A sua história pública remonta aos princípios da década de 70, vivia-se em Portugal ainda o tempo da ditadura. O lusofascismo estava na recta final, mas ainda se matava e se morria em África em nome de um império que há muito tempo tinha deixado de sê-lo.
O jovem Jorge frequenta Engenharia, mas entende-se bem melhor com o piano e a guitarra do que com os catetos e as hipotenusas. O disco de estreia, The Nine Million Names of God (1971), faz-se eco já do sufoco que dominava a realidade da época: Sir you got to help us / In our greatest nation / We're trying to find / Get into our minds / The nine billion names is god. Em inglês, que lhe parece mais fácil para trabalhar em música. Até que conhece José Carlos Ary dos Santos:
«Foi um grande professor, tal como foi também o Vergílio Ferreira, que tive no Liceu Camões, mas aí ainda era um puto», lembra. «Com o Ary… Era muito fácil ter uma empatia com o Ary, era um gajo extremamente aberto, ainda que tivesse um ego enorme. “Aqui ninguém me põe a pata em cima”, dizia ele, “porque é de baixo que me vem acima / a força do lugar que for o meu”. O Fernando Tordo musicou isso, e eu também. O Ary? Eh, pá!, era vê-lo, com o seu ego, a pegar num bocadinho duma música, cheio de gente à volta, e ao fim de 15 minutos a música estava feita!»
Desse período ficou uma parelha de cantigas, gravadas num EP em 1973, e algumas colaborações com Amália: «O Ary tinha uma paixão pela Amália, e eu trabalhei um bocadinho com ela, também. Ele tinha uma relação muito forte com os amigos, com o Fernando Tordo e o Nuno Nazareth Fernandes. E eu era um puto, mas não era por isso que o Ary me punha de lado. A maneira como ele escrevia deu-me para aprender muito…»
Depois há vozes que se fazem ouvir a partir do estrangeiro: «Foi quando aparecem o Sérgio [Godinho] e o Zé Mário [Branco], sobretudo. Era diferente do que se fazia por cá. E eu: “Pá, isto é a música que eu quero fazer!”»
Partida
Mãe / para quê negar / que a vida te desfez // Não / não vou cá ficar / nem ser igual a ti // Eu não me afundo mais / na vida que eu não quis / e vou tentar outro país. [Já Chega de Ilusões, in ‘Com uma Viagem na Palma da Mão’, 1975]
Não é a primeira vez que viaja, mas agora vai embora sem certeza de regresso: «Em 73, tinha trabalhado com um encenador que queria fazer o Godspel em Portugal, que depois foi objectivamente boicotado no Parque Mayer. É o ano em que deixo de ir às aulas. Com aquelas noites todas, eu ia às práticas, quando ia, e muitas vezes havia greve. Portanto, já sabia que ia chumbar. Consegui uma licença militar a três semanas de entrar na tropa, e fui-me embora.»
Rumou à Dinamarca depois de leiloar, literalmente, o recheio da casa onde vivia: «Naquela altura, no Arnaldo Trindade, nós, putos, éramos pagos em géneros. A mim calhou-me acho que foi uma máquina de lavar, e então, quando decido que não vou levar injecções de sargentos, fiz um leilão. E fui para a Dinamarca.»
O exílio durou uns meses, até Abril de 1974:
«Ouço falar do golpe de manhã, está a acontecer, ninguém percebe nada, e ouço pela BBC. Depois liguei para Portugal. Gastei uma conta de telefone enorme – que não paguei, ficou para o governo dinamarquês – a perguntar às pessoas – ao Ary dos Santos, ao Jorge Gentil – o que estava a acontecer. Foi uma conta de telefone que não te passa pela cabeça…»
«Pagaram os dinamarqueses?»
«Pagaram, pagaram…»
«Foi a contribuição deles para a revolução…»
«Também acho que sim. Eles não se chateiam.»
Regresso
Ai, Portugal, Portugal / de que é que tu estás à espera? / Tens um pé numa galera / e outro no fundo do mar / Ai, Portugal, Portugal / enquanto ficares à espera / ninguém te pode ajudar [Portugal, Portugal, in Acto Contínuo, 1982]
A urgência do momento leva-o a abdicar do asilo político que lhe tinha sido concedido pelo governo dinamarquês: «Eu tinha aquela ideia de ir gravar a Londres, o meu primeiro álbum era para ter sido gravado em inglês, em Inglaterra. Só que a coisa correu mal: eu chego ao aeroporto de Gatwick, sem dinheiro, com um ar desgraçado, cheio de discos e, sei lá, com umas frigideiras a tiracolo… Os gajos não me queriam deixar entrar, tive de lhes dizer que era primo do primeiro-ministro, mas para eles até podia ser primo da rainha…»
A verdade é que Adelino da Palma Carlos, chefe do primeiro governo provisório da revolução, era primo direito do pai de Jorge, mas a “cunha” não terá sido muito convincente para os ingleses. Mesmo assim, acabou por obter um visto por 15 dias, o que lhe deu para perceber, entre outras coisas, que «um tipo chega a Inglaterra e não grava um disco assim».
Chega a Portugal algumas semanas depois, entrando de carro pelo Alentejo. Descobre a revolução quando, ao passar por Grândola ficou sem combustível e a GNR lhe ofereceu uns litros de gasolina: «Eu tinha estado sempre em contacto com a malta de cá, diziam-me que isto estava uma festa do caraças. E estava.»
Com o coração à esquerda, mas sem vocação militante, Jorge continuou a viver a liberdade como sempre a idealizou. «Para mim, o 25 de Abril de 74 foi acima de tudo a hipótese de voltar a casa, livre», diz. E também partir e voltar quando lhe apetecia, porque ainda havia muito mundo para conhecer. Chegava com uma viagem na palma da mão, dizia ‘té já, pedia qualquer coisa p’á música, um pouco ao sabor do momento.
«A ideia era essa, deixar acontecer. Um gajo ia-se embora ou porque fosse a tropa, ou porque fosse uma revolução que já não estava a dar. E nessa altura estou a ler muito a sério os textos do [Leonard] Cohen, da beat generation. E já tinha lido Camus. Mas também li A Odisseia e O Padrinho um a seguir ao outro, assim de repente, num hotel de Paris. Não me lembro qual foi a ordem. E pelo meio houve muita tragédia grega, a Medeia, o Shakespeare. E muita música, também. Sempre.»
Agora
Tudo o que eu vi / estou a partilhar contigo / o que não vivi, hei-de inventar contigo / sei que não sei, às vezes entender o teu olhar / mas quero-te bem, encosta-te a mim. [‘Encosta-te a Mim’, inCD Voo Nocturno, 2008]
O resto da história de Jorge Palma, com mais ou menos pormenor, é a bem dizer do domínio público. Agora, que já atingiu a idade em que se começa a olhar o mundo mais serenamente, Jorge Palma mantém a postura de autenticidade blasée. Continua a pensar que gostaria de traduzir “Beautiful Losers”, de Leonard Cohen, o livro que o ajudou a entrar na idade adulta:
«Para mim, é o grande livro do Cohen, melhor que o Favorite Game. Eu cheguei-me à frente, ainda disse ao Hermínio, da Assírio, que lhe traduzia aquilo, mas depois meteram-se questões de direitos e tal, ficou mesmo assim…»
Nesta altura do petisco e da prosa, é inevitável o olhar em volta sobre o saber de experiências feito que marca os discos mais recentes de Palma. Pergunto:
«O Encosta-te a Mim é a tua Chanson des Vieux Amants?»
Faz uma pausa antes de responder:
«Nunca foi pensado como tal. Eu acho que a Chanson des Vieux Amants é muito melhor.»
«Não se trata de comparar as canções, mas a sua essência», esclareço.
«Eh, pá, estás-me a dar um elogio do caraças!»
«São ambas canções que ninguém consegue escrever aos 20 anos, pela vivência que implicam.»
«És capaz de ter razão», responde, e põe-se a trautear a canção de Brel.
A conversa vai longa, já passámos por muitas lembranças. É tarde, Jorge fuma mais um cigarro. Pergunto-lhe:
«És um homem feliz?»
Ri-se:
«Eh, pá! Essa pergunta é muita bétinha…»
«Está bem, não fujas ao assunto.»
«Deixa-me ir buscar um scotch…» Faz uma pausa. «Tenho momentos de grande infelicidade, e tenho momentos de grande felicidade, também.»
«Ponhamos as coisas de outra forma: o balanço, ao fim de todo este tempo, é positivo ou negativo?»
Ri-se novamente:
«Pior! Pioraste a pergunta…»
«Contigo, já estou por tudo.»
«Ok. Se pões as coisas dessa maneira, se tivesse que ser maniqueísta, feliz ou infeliz: sou feliz. Agora, tenho momentos de grandes angústias. Que têm a ver com as ressacas, com coisas que eu gostava de ter feito melhor…. Eu às vezes posso ser um gajo muito down. E tenho quase 60…»
«E a gente ainda ter quer por cá mais uns anos…»
«É isso. Isso faz-me feliz. Mas às vezes gostava de ter feito as coisas de outra maneira, e por isso, de mim para mim às vezes sinto-me um bocado infeliz. Por não ter feito as coisas da melhor maneira. Não estou a falar só de música, estou a falar da vida, mesmo. E posso-me sentir muito em baixo. O conceito de felicidade, para mim, não faz muito sentido. São momentos. Depois há momentos que são chatos.»
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