Tem 44 anos feitos em Julho, e já conta 20 de “percurso circundante” pela música, como gosta de dizer, mas mesmo assim mantém intacto o ar modesto de rapazinho tímido que os amigos e o público lhe conhecem desde sempre. “Um Redondo Vocábulo” é o seu quinto CD em nome próprio – depois de “Missangas”, “Barco Voador”, “Zanzibar” e “Outra Vida” – e nele assume por inteiro o seu afecto pela obra do tio, de quem herdou muito mais do que o apelido e o gosto pela música. Chama-se João Afonso e deu-se à conversa como se dá a todas as coisas que lhe dão gozo. Em Lisboa, no jardim da Estrela, ou em qualquer outro lugar onde se sinta bem. Porque o importante, diz ele, não é a “carreira”, em que não acredita, mas os pequenos momentos que se vivem e o prazer que está lá dentro.
A – À parte o “Maio, maduro Maio”, com a Amélia Muge e o José Mário Branco, este é o primeiro dos teus discos onde assumes por inteiro o facto de seres sobrinho de José Afonso. E isso não te inibiu...
JA – Não, pelo contrário. Estimulou-me e motivou-me. Mas este é um disco com características particulares, é um disco de três pessoas, e é mesmo nosso: o “master” pertence a mim, ao João Lucas e ao José Fortes. Fomos os três que abraçámos o projecto, com o apoio da SPA – sem o qual nunca teria saído o disco, pelo menos desta forma – e depois conseguimos distribuí-lo com o Público. O disco vive do diálogo entre a minha voz e a voz do piano do João Lucas, que além de grande amigo meu é um músico excepcional e fez uns arranjos muito especiais das músicas do meu tio. Eu gosto muito de o ouvir tocar, de tal maneira que às vezes engano-me: nós temos aquilo já tão entrosado, tão ensaiado e temos tocado bastante o “Um Redondo Vocábulo”, mas às vezes acontece nos espectáculos que eu fico a ouvir os solos dele, e fico tão enternecido a escutá-lo que me esqueço de entrar…
A – A ideia de gravares um disco inteiramente dedicado a canções do teu tio surgiu como?
JA – Foi um bocado por acaso. O “Um Redondo Vocábulo” começou por ser um “picanço”, digamos, do meu irmão Zé, que foi o primeiro autor deste guião. E depois eu comecei a trabalhar com ele na ideia original, que era um percurso pelas canções menos conhecidas do meu tio. E começou por ser um espectáculo, só depois é que surgiu a hipótese de o gravar, mas a ideia não era essa, era mesmo só cantá-las. O José Fortes, que toda a gente reconhece pela excelência do seu trabalho, foi mais do que um técnico e deu um contributo fundamental na produção. Mas, voltando ainda à tua pergunta anterior, acho que chegou a altura de eu, depois de ter criado um certo afastamento, me voltar a aproximar. Porque houve uma época em que cantava essencialmente as músicas que ia inventando, mas só aqui ou acolá punha uma música do meu tio, que foi sempre um gosto muito especial…
A – Aliás, tu começas a cantar, publicamente, por causa dele. A primeira vez que te ouvi foi, salvo erro, num espectáculo de homenagem ao Zeca, na Galiza, em 1987 …
JA – Talvez. Aí foi uma brincadeira, foi quando eu comecei a cantar. Eu comecei, profissionalmente, por volta de 89, está a fazer 20 anos, mas sempre gostei de cantar. E a minha cultura musical não é só “zecafonsina”, naturalmente, mas passa muito por aí. A influência do meu tio foi muito grande, e mesmo a parte “híbrida”, africana, que eu tenho, passa muito por ele – os “ailé ailés”, os “lá no Xepangara”. E o estímulo, o impulso que ele me deu e que me permitiu mostrar o meu trabalho, é uma coisa que eu não nego, assumo isso com muito gosto. O “Missangas”, o meu primeiro disco e que foi produzido pelo Júlio Pereira, apareceu e sei que uma quota-parte do interesse das pessoas passava por ouvir o sobrinho do Zeca Afonso.
A – Aliás, tens dois inéditos dele nesse primeiro disco...
JA – Há duas letras que eu musiquei: “Eu Não Sei o Que Faz o Sol” e “Entre Sodoma e Gomorra”. Depois houve um período em que, apesar de sempre ter gostado muito de cantar canções do meu tio – e cantei muitas, muitas vezes, com o meu irmão António e com o Sérgio Mestre –, houve um período em que quis inventar coisas minhas. Depois do “Missangas”, o meu afastamento foi intencional, porque queria continuar a fazer aquilo que gosto de fazer. O que eu valorizo no meu percurso, é o percurso circundante das coisas pequenas da vida. E uma delas é o gosto do convívio que tenho tido com músicos excepcionais, de quem sou amigo, como o José Moz Carrapa, com quem fiz o “Barco Voador” e o “Zanzibar”, e o João Lucas, que já tinha produzido o “Outra Vida”, e o Júlio Pereira, que já referi. São pessoas que me marcaram. E poderia referir inúmeros músicos mais, já sem falar do meu irmão Toninho, com quem tenho cultivado muito estes jogos de vozes, de pergunta e resposta, que vão desde o “Missangas” até ao “Outra Vida”. Isto para dizer que, a partir de certa altura o que me questionei foi se era mesmo isto que eu queria fazer. Porque tinha que ter a certeza do que estava a fazer, para não haver confusões…
A – E havia talvez também a necessidade de mostrares às pessoas que não eras apenas “o sobrinho de José Afonso”…
JA – Sim, basicamente era isso. A certa altura tive de perceber que a história da “semelhança tímbrica”, de que as pessoas me falavam, não me podia bloquear. Eu até acho que é uma coisa um bocado exagerada, porque pode haver algumas semelhanças, mas a minha voz é diferente. Agora: o meu tio tinha um dom de compositor e tinha um dom de intérprete. E o “Um Redondo Vocábulo” é um bocado o reconhecimento disso, ou seja: comecei a cantar estes temas e a perceber que não tinha só um afecto pelo meu tio, como pessoa, mas tinha também um afecto pelas canções dele. As canções diziam-me histórias, diziam-me afectos, ligações à minha infância, a Moçambique. Eu lembro-me de que era miúdo, ouvi a “Menina dos Olhos Tristes” e sem saber porquê comovi-me, vieram-me lágrimas aos olhos. Eu sei, hoje em dia, que ele tinha uma atitude a cantar – e tem – que nos chega à alma, ao coração, era um grande cantor, um grande intérprete, uma voz. Há músicas, como o “Um Redondo Vocábulo” ou o “Que Amor Não Me Engana”, que me fazem arrepiar. Agora, eu posso reconhecer isso, orgulhar-me de ser sobrinho de quem sou – porque cada vez gosto mais de o admirar como grande intérprete, grande cantor, grande poeta – e ao mesmo tempo saber que há que separar águas, que eu sou mais um cantor que canta em português, em Portugal, e que gosto de inventar canções. E que cada vez mais valorizo esse prazer que me faz ficar horas com uma viola, ou sem ela, em torno duma canção. É um prazer que ainda não me saiu. Há coisas que vão acabando com a idade, deixamos de gostar de certas coisas para apreciarmos outras, ou passamos a gostar de outra maneira. Mas isto é uma espécie de “ioga” que eu tenho, ao inventar uma canção nova…
A – A alegria da criação?
JA – É isso. Começa como uma brincadeira, como as brincadeiras que partilhei com os meus irmãos. E isso espero que nunca desapareça porque é o que me dá alento para continuar, mesmo com todas as contrariedades que existem neste país, em termos da divulgação, das dificuldades da edição. E nesse sentido o “Um Redondo Vocábulo” é uma coisa que me está a dar um grande prazer, até porque foi uma vitória sobre essas dificuldades. Gravámos em Viseu, no Teatro Viriato, sem dinheiro nenhum, durante quatro dias e foi um prazer enorme, foi uma grande comunicação entre nós três. E, como sempre, depois de acabar um disco, já estou com a cabeça virada para o próximo.
A – Que já não vai ter nada a ver com este, calculo…
JA – Nada. O “Um Redondo Vocábulo”, para mim, também é o fecho de um ciclo, apetece-me mostrar agora coisas muito diferentes. Neste momento tenho um trabalho praticamente feito em casa, a que eu chamo “Mapa Cor-de-Rosa”: são poemas inéditos do [José Eduardo] Agualusa e do Mia Couto. É um disco que eu tenciono que seja mais abrangente, que tenha colaborações de músicos da nossa lusitanidade: Angola, Moçambique, Cabo Verde…
A – E terá alguma ligação também a Espanha, à Galiza, aos outros lugares por onde tens andado?
JA – Estou na dúvida. O Kepa Junquera, com quem colaborei recentemente num disco, disse que ia participar. Mas essencialmente quero assumir a nossa história de homens que andaram pelo mundo. Eu tenho um tema no “Zanzibar” que fala justamente de pessoas que assumiram aventuras complicadas e andaram pelo mundo em condições adversas, encontrando lugares muito distantes, e eram pessoas de uma grande coragem, que seguiam o seu percurso. E muitas vezes, por questões de um certo fundamentalismo ideológico, nós andámos de costas voltadas para o nosso passado, não assumindo esse lado cosmopolita de Portugal. E acho que já é altura de olharmos para a nossa história e orgulharmo-nos dela. Não temos que negar a nossa história, temos é de nos orgulhar da miscelânea que fizemos com os países onde vivemos. Por isso é que temos escritores que são tão portugueses como moçambicanos e angolanos, como o Mia Couto ou o Agualusa. Que, para além de terem uma grande qualidade literária, são pessoas de uma grande coragem: estou a ler o livro mais recente do Agualusa e estou arrepiado pela sua qualidade e pela atitude corajosa de denúncia da corrupção e do abuso de poder que existem em Angola actualmente. E isso só me enche de orgulho, por ser amigo duma pessoa como o Mia Couto.
A –Nasceste em Moçambique e vieste para Portugal aos 12 anos, já depois do 25 de Abril e da independência das colónias. Como foi essa mudança na tua vida?
JA – Foi um choque. O “Missangas” fala um pouco disso. É um conjunto de relatos desse período feliz da infância que eu tive em Moçambique e depois em Cascais. Vivi em Moçambique os primeiros três anos após a independência, entre 75 e 78, e foi um período muito rico, efervescente, de muita animação. Eu fazia teatro, num grupo chamado O Milho Tem de Crescer, dei aulas de alfabetização, embora ainda fosse um puto. E cantava. Cantava para centenas de pessoas, tinha uma lata que hoje já não tenho, foi uma fase de grande alegria. Tive sempre uma ligação muito grande aos meus irmãos, foi uma infância muito feliz, de espaços abertos, com cheiros que aqui não existem. Voltei anos mais tarde a Moçambique e identifiquei-me muito com esses cheiros do Índico, que são únicos, e com o riso dos moçambicanos, aquele riso bonito, verdadeiro. Em Moçambique vivi essa efervescência, e tudo o resto, a realidade, passava-me ao lado. Hoje, à luz do que sei, naturalmente não viveria esse tempo da mesma maneira, mas eu era um puto e não sabia que se estavam a dar as maiores injustiças, as maiores atrocidades por parte dos novos governantes. Hoje sei que havia campos de concentração, que havia muita coisa que estava e ainda está um bocado branqueada. Mas o que me sobra são as vivências dum miúdo que estava longe disso tudo.
A – E depois chegas a Portugal…
JA – Chego a Portugal e apanho um ambiente muito frio. Para além do clima, que foi um choque, não estava habituado. Usava colants debaixo das calças, porque não aguentava o frio! Foi uma fase de inadaptação terrível. De tal maneira que cheguei a pôr a hipótese de voltar e ir viver com um grande amigo meu que era o professor Aurélio Quintanilha, um grande cientista a quem dediquei a música “Fugir com o Cientista”. Lembro-me que cheguei a falar com o Camilo Mortágua para voltar a Moçambique. Eu era um puto, e queria voltar a ter aquelas vivências. Mas depois falaram mais alto as alegrias com os meus irmãos, com os amigos, e nessa altura agarrei-me muito à parte desportiva, tornei-me fanático pelo futebol, jogava de manhã à noite. A verdade é que foi um grande contaste. Também em termos humanos havia uma certa distância que transpus, se calhar inconscientemente, para o desporto, porque apesar de tudo há uma aproximação corpo a corpo. E depois tinha a minha família, os amigos, éramos muito próximos.
A – Estás a celebrar os primeiros 20 anos daquilo a que vulgarmente se chama carreira. O que é que valorizas mais do que já fizeste?
JA – Eu não gosto da palavra carreira. O meu percurso é um pouco circundante, cada vez valorizo mais as pequenas coisas que me rodeiam: a história de um vizinho próximo, as relações amorosas, o gosto de escrever. O meu pai ensinou-me que devemos valorizar as coisas que são aparentemente menos importantes, porque essas são as coisas que realmente interessam na vida: a relação que tenho com os meus filhos ou com os meus sobrinhos, a forma de valorizar o dia a dia, às vezes mais cansativo, às vezes menos cansativo, o gosto de contar histórias, e de brincar histórias. Eu tenho sempre a casa cheia de miúdos… E no meio disto vou fazendo canções, não sou daqueles que se fecham para fazer um novo disco, isso a mim faz-me uma grande confusão. Vou fazendo canções, e quando surge o desafio, ‘bora lá fazer um disco, eu tenho as canções e vou trabalhar sobre elas. Muitas vezes é quase um desabafo, assim como fechar os olhos depois de uma boa garrafa de vinho, ou do convívio com alguém, com quem encontro um dedilhado… Às vezes são ciclos de canções redondas, de dedilhados, que impulsionam uma canção. Depois tento criar alguma distância sobre esse momento um bocado embriagado da curtição. E às vezes é uma desilusão, um déjà vu, outras vezes é um grande gozo. Eu não sou poeta mas gosto muito de escrever, e os textos que escrevo para as canções são burilados até ao último momento. Às vezes venho para aqui ao Jardim da Estrela à procura de uma palavra…
A – Consideras-te mais um compositor ou um intérprete?
JA – Eu gosto muito quando o meu amigo Luís Filipe Rocha me chama “ó cantor!” Gosto muito desse termo, “cantor”. Mas não nego a minha faceta de autor, que é também uma das coisas que me ajuda a viver. Inclusive tenho composto para outras pessoas, a Filipa Pais, a Uxía, o Luís Pastor, os Quinta do Bill, já escrevi um fado para o Camané. E gosto muito de o fazer, gosto de me colocar na voz das pessoas e imaginar como é que aquele intérprete vai cantar aquela canção. Esse lado da composição para outras pessoas ainda está a crescer, como eu próprio. Sou um músico autodidacta, mas estou a fazer o percurso ao contrário: e agora estou a estudar música, a aprender solfejo, e estou a adorar. Só tenho pena de não ter começado antes, mas pronto, nunca é tarde para aprender, e eu quero estudar mais e aprender mais. Sinto que ainda estou muito no princípio, a sensação que tenho é que ainda agora comecei. E a procura da quimera, de poder chegar um dia e dizer que fiz uma canção que me encha as medidas, dá-me alento para continuar neste mundo que nem sempre é fácil da música. Essa busca da quimera, que também tem a ver com o reencontro com os dias felizes da infância, essa pesquisa da música que fale das tais pequenas coisas é o que me dá alento para continuar.
Revista Autores - Out / Dez 2009