“Se eu não soubesse já onde vivo, se não soubesse que país é este e que pessoas são estas que me rodeiam, se calhar já estava amargurado. Mas não: rio-me. Rio-me de tudo isto e faço como o outro: deix’ós poisar...”
Aos 61 anos, Paulo de Carvalho ainda não perdeu o jeito traquina de puto lisboeta criado entre os bairros do Castelo e de Alvalade. Há quem o compare a Frank Sinatra, pelo timbre inconfundível e pela voz afinadíssima que é o seu instrumento de eleição desde que se iniciou nas lides da música, já lá vão 46 anos. Mas ele, que até prefere Tony Benett ao Old Blue Eyes, e Ray Charles ou Al Jarreau a qualquer deles, continua teimosamente a recusar a ideia de que é a melhor voz portuguesa: “Melhores eram o Carlos Lopes e a Rosa Mota, que chegavam em primeiro lugar mais vezes do que os outros. Em arte não há um que seja o melhor. Há muita gente a cantar muito bem em Portugal, como há muita gente a compor muito bem em Portugal.”
Não se pense, porém, que se trata de falsa modéstia, Paulo de Carvalho tem perfeita noção daquilo que vale: “Se me disserem que estou no primeiro grupo, ah, isso acredito que sim, estou sim senhor. Faço muito bem a minha profissão, sei que faço bem.”
É assim, com a frontalidade que lhe conheço vai para trinta anos, que nos reencontramos numa esplanada à beira-Tejo, para uma conversa marcada por um suave tom de ironia, característica de sempre do autor de “Lisboa Menina e Moça” – apenas um dos muitos êxitos que assinou em quase meio século de cantigas. O pretexto para o diálogo é, agora, o lançamento de mais um disco, intitulado “Doamor”, o seu primeiro registo de originais nos últimos dez anos. E a primeira pergunta é a inevitável:
Autores – Porque é que estiveste este tempo todo sem gravar? Foi por vontade tua ou por vontade de terceiros?
Paulo de Carvalho – A vontade de que eu o fizesse foi muito de terceiros. Foi a Farol, que é a minha editora neste momento, que insistiu bastante para que eu fizesse este disco. Porque é que não o fiz mais cedo? Sei lá. Não se proporcionou, não fiz muita força, não tive meios para o fazer, não me apeteceu... Eu não sou uma pessoa que grave com frequência, nos últimos anos – nos últimos muitos anos... Mas também entendo que o mercado não permite que determinados músicos, como eu, o façam. Porque aquilo que nós queremos fazer, que gostamos de fazer, não é o que se vende imediatamente. E nós estamos numa época de venda imediata. Os discos, ao fim de 15 dias, um mês, são velhos...
A – A lógica da fast-food aplicada também à música...
PC – Aplicada a quase tudo. Mas não acho que seja assim tão importante gravar um disco. Acho importante fazerem-se espectáculos, haver pessoas que nos vão ver – e, no meu caso, tento que as pessoas que me vão ver não sejam aquelas pessoas “pagas” pelas câmaras municipais. Quando digo “pagas” é quando nós, músicos, somos pagos pelas autarquias para actuar para aquele público que se habituou aos espectáculos grátis. E aqui tenho de fazer uma ressalva: meu querido Luís Cília, como tu tinhas razão aqui há uns anos... Por isso tento que as pessoas que me vão ver o façam porque querem, paguem o seu bilhete, queiram ver e ouvir. Isso é a parte mais complicada de tudo isto porque nem sempre dispomos dos meios para dar a conhecer o que fazemos. E aqui, visto que estamos a falar para a nossa revista, é bom que os autores mais novos que nos possam estar a ler não pensem que nós, os mais velhos, temos alguma primazia, porque a luta é igual. Quem está a começar neste momento tem tantas dificuldades em mostrar o seu trabalho como têm os que, como eu, andam nisto há 46 anos. As dificuldades são exactamente as mesmas. Por incompetência de muita gente, por dificuldades de mercado, é verdade que sim – pois quem tem dificuldade em comprar o bife, logicamente que vai deixar para trás a música, o disco, os espectáculos. E se não for para comprar o bife, pelo menos para comprar o último modelo de telemóvel. Isso é prioritário em relação à música...
A – E às vezes, se calhar, até em relação ao bife...
PC – E ao bife, a tudo. Portanto, eu acho que, neste aspecto da divulgação e da defesa do nosso trabalho, cada vez mais faz sentido o slogan “a luta continua”... Eu digo isto com um certo ar irónico porque, passados 30 e não sei quantos anos sobre uma data em que pensávamos que íamos melhorar a vida de todos nós, as coisas complicaram-se de uma forma que faz com que seja muito difícil viver, sobretudo daquilo a que se chama arte. Eu nunca me preocupei muito com essa coisa a que muita gente dá uma imensa importância, que é a “carreira” – o que me faz sempre lembrar o autocarro para Alcântara. Eu sou uma pessoa mais preocupada com a música, boa ou má, que vou fazendo. Preocupa-me a música, preocupa-me a colaboração com músicos, preocupa-me de que forma é que posso fazer tudo isto, a quem é que é dirigido, quem é que cria disponibilidade para ouvir o que eu faço. Não é falsa modéstia, porque eu sei onde estou e sei o que fiz e o que faço, mas isto é a parte mais difícil de tudo. Quando nós chegamos a um sítio e exigimos ter condições para fazer o nosso trabalho, quando outros, às vezes com mais popularidade do que nós, lá estiveram e não o exigiram, estas coisas são complicadas de se viver. Mas eu acho que tenho capacidade para me rir disto tudo...
“Uma praga que nos rogaram”
A – Sentido de humor, aliás, é coisa que nunca te faltou...
PC – Penso que não. E depois eu fui criando a minha forma feliz de viver. Não contentinha, mas feliz: muito alicerçada no ambiente familiar, na minha família de que gosto bastante – aquela com que vivo diariamente, mas também a outra, que inclusive colabora comigo nos meus espectáculos: os meus filhos que já são músicos, também decidiram escolher esta vida, coitadinhos (risos). E isso faz com que eu seja uma pessoa... não direi feliz, porque já se sabe que a felicidade são momentos, não é uma coisa constante. Mas eu tenho muitos momentos de felicidade, ou próximo disso. E isso é bom, faz-me andar satisfeito com as pessoas que tenho ao lado. Às vezes embirro um bocado com a malta que não diz “bom dia” quando eu digo... Mas esse é o resultado da época em que estamos a viver, da má-criação que existe, do individualismo que existe hoje em dia. Mas acho que sou capaz de entender o que me rodeia e essa é a parte, para mim, mais importante. Eu sinto em muitos dos companheiros da minha idade uma grande amargura por não verem reconhecido o trabalho que têm e a obra que têm. Mas, gaita!, vamos lá ver uma coisa: salvaguardando as devidas distâncias, o Camões levou séculos para ver reconhecida a obra dele! O Pessoa levou anos! Porque é que nós havíamos de ser diferentes? O povo é o mesmo...
A – Será a tal fatalidade de ser português?
PC – Sei lá, se calhar alguém nos rogou uma praga e nós não sabemos... Mas porque é que há-de haver uma fatalidade em ser português? Numa terra destas, isto é bestial, temos todas as condições... Francamente, não consigo analisar as coisas dessa maneira. Mas é-me difícil viver, hoje em dia, sobretudo nesta parte urbana. Se calhar, fora das grandes cidades é capaz de ser mais fácil. Eu tenho notado, nos lugares por onde ando, que há muita gente boa que, sem os apoios de quem manda neste país, está a lutar pela cultura, e não só, no interior do país. Tenho tido muitas e agradabilíssimas surpresas em muitos lugares onde tenho ido. Desde Torre de Moncorvo a Lamego, e muitos mais. Os pequenos auditórios que foram construídos ou reconstruídos, as rádios do interior...
A – É curioso que vários colegas teus me têm falado disso. Dá a ideia de que há um outro país que está a surgir...
PC – Digo-te uma coisa: só não estou a viver um bom bocado longe de Lisboa porque não vivo sozinho. E porque há outras condições de que necessito, em termos de filhos mais pequenos, que ainda não estão criadas. Porque é muito cansativo, é arrasador, viver neste momento em Lisboa, com todas estas manias, todo este consumismo, e tudo isto que no fundo não é nada importante. O entendimento que a maioria das pessoas tem daquilo que é a qualidade de vida... Alguém os enganou, só que eles ainda não deram por isso. Mas isto são períodos normais da nossa história colectiva. Agora estamos, se calhar, a dar os dois passos atrás de que falava o outro, um dia destes daremos o passo à frente. Mas peço que não vejam nisto um fulano pessimista, que não sou. Se não lá tenho de voltar a dizer que um pessimista é um optimista, só que com muita experiência... Mas vejo as pessoas da minha idade, que entretanto se instalaram em cargos de poder, seja ele qual for, vejo as pessoas perfeitamente instaladas e a contradizerem tudo aquilo por que disseram terem lutado há uma série de anos. E eu continuo na mesma...
A – E se calhar pagas um preço por isso...
PC – Ai, pago, pago. Eu não frequento os corredores do poder, e pago por isso, claro que pago. Só que tenho consciência, e tendo essa consciência não vivo amargurado. E tenho descoberto nestes últimos anos uma série de gente mais nova, com quem trabalho, inclusive, que não tem pruridos do antigamente, que não sabe por onde é que eu andei, e que me julga pelo que sou no dia a dia, e pelos contactos que temos. E isso é muito bom de verificar.
“A música é para misturar”
A – Aqui há uns três anos, na última entrevista que fizemos – justamente para a revista Autores – dizias-me, citando o Professor Agostinho da Silva: “E posto que viver me é excelente / cada vez gosto mais de menos gente”...
PC – É cada vez mais assim. Por um lado há aquele lugar-comum: cada vez tenho menos certezas. Mas penso que isso deriva do conhecimento: por termos mais conhecimento, se calhar temos menos certezas. Agora, esse pequeno poema de dois versos do Professor Agostinho da Silva, de quem cada vez gosto mais, esse também já é meu. Ele não se vai importar, com certeza, até porque ele era um homem de não ter nada e de dar tudo o que tinha. Já o canto, fiz um improviso em cima duma percussão afro, e canto isto à portuguesa. Aliás, a música é para misturar...
A – Tu tens andado muito pelo estrangeiro...
PC – Não direi muito, mas tenho feito parte da minha vida por fora, e vou continuar a fazer e a fazer força para que isso aconteça. E porquê? Aqui há uns anos, quando nós entrámos para a Europa, como se diz, fomos – e continuamos a ser – super-invadidos por música de vários lugares do mundo, e isso amedrontou muito, pensou eu, alguns dos meus companheiros de profissão. Aí pensei no que estava a fazer, pensei na música que faço, nas raízes culturais da música que faço, e tentei virar tudo isto ao contrário. E como é que isso se faz? É nós não nos amedrontarmos, não nos fecharmos neste Portugal que nos pode parecer, desse ponto de vista, mais pequeno, e pensarmos, isso sim, que se nos abriu um mercado. E como eu, com a idade que tenho, não pretendo fazer concorrência a nenhuma Britney Spears, que alcança uma quantidade mais nova de público que provavelmente não estará muito interessada em saber quem sou... Mas existe um mercado, de menos gente, mas gente mais selectiva, para a música que quero fazer e que traz – ou leva, neste caso – a cultura dos países dum lado para o outro. Isto é um pouco como o vento e o pólen e os pássaros, isto vai andando dum lado para o outro. E acaba por funcionar mais o passa-palavra, e nós vamos sendo conhecidos. Demora é mais tempo. E é isso, de certo modo, o que tenho andado a fazer. Nunca me passou pela cabeça que, aqui há um mês atrás, eu estaria na Holanda, com uma super-orquestra, a cantar música minha, com uma pessoa, um orquestrador dos que mais admiro, chamado Vince Mendonza. O que terei eu feito de bom para me acontecer isto? E, pronto, lá estava...
A – Isso aconteceu como?
PC – Aconteceu através de outro grande amigo, com quem tenho feito muita coisa, que é o Ivan Lins, que me deu a conhecer ao Vince Mendonza, porque gosta do que eu faço, tem grande admiração por mim, como eu tenho por ele. E esta é a parte da música que me interessa: trocar experiências, falar com os músicos daquela orquestra que são brilhantes, falar-lhes da música de que eu gosto, e eles falam-me da música de que eles gostam. E as coisas acabam por ser coincidentes. Aqui para nós que ninguém nos ouve, 80 e tal por cento da música que eu ouço é instrumental. Aprendo mais, para a minha profissão, com um saxofonista ou com um pianista, do que com um cantor...
A – Isto vinha tudo a propósito do estrangeiro...
PC – Vinha tudo a propósito dos espectáculos, que vão alternando. Estive este ano no Canadá, a cantar no 10 de Junho, e foi muito bom. Mas não é por estar a cantar para a nossa gente que eu me vou pôr a cantar o “Bailinho da Madeira” ou qualquer coisa supostamente mais acessível. Canto sempre aquilo que eu faço. Mas o tempo vai mudando. Às vezes é difícil, e temos de fazer um apanhado de tudo aquilo que fomos conhecendo. E, pá, quem praticamente começou, como eu, a trabalhar com uma pessoa chamada José Carlos Ary dos Santos, que fazia os poemas que fazia, e depois, com o andar dos tempos vê algumas letras serem consideradas a oitava maravilha, das duas uma: ou se desata a rir, ou desata a chorar. Mas, pronto, o que é que queres? Eu acho que é a isto que se chama vida: viveu-se, fez-se, foi-se fazendo, sem grandes preocupações com o que as pessoas achassem bem ou mal. Eu pouquíssimas vezes ou nenhumas tive preocupações com o resultado final, em termos de agradar. Poucas vezes cedi a isso. Cedi algumas, ou tentei ceder: umas vezes foi conseguido, outras vezes não. Um exemplo de uma quase-cedência em relação à qual acho graça, porque foi feita em conjunto com uma pessoa que eu e tu admiramos muito, mas que toda a gente, quando fala dele, fala do grande escritor e do jornalista, mas ninguém fala do escritor de canções que também foi: estou a referir-me ao Fernando Assis Pacheco, e a cantiga é obviamente a “Nini dos Meus Quinze Anos”.
A – Que foi um grande sucesso...
PC – Foi um super-sucesso, ainda hoje é. E é uma cantiga lindíssima, quase ingénua, e que fala de nós, dos nossos 15 anos, mas parece que para alguma intelectualidade é uma vergonha ser popular. Eu sinto às vezes alguma amargura, não por mim, mas por estas coisas... Uma pessoa como o Fernando, que me ensinou a comer polvo à galega, com o chamado molho à espanhola, e que depois meia dúzia de pseudo-amigos intelectuais, quando falam da obra, nunca falem da obra do Fernando como escritor de cantigas, que também foi.
O poder trata mal os autores
A – Há pouco dizias que não és um pessimista...
PC – E não sou. Isto são constatações...
A – Falavas também da divulgação, que hoje se faz também de outras maneiras, nomeadamente pela internet, onde tu também tens um espaço. Muitos músicos começam a criar espaços na net, até como forma de distribuição da música, como forma de combater os downloads ilegais. Como é que tu olhas para esse universo todo e como é que te situas nele?
PC – Olha, eu não estou muito à vontade para te falar disso, porque não sou um entendedor, e não quero dizer disparates. Tenho um saite, paulodecarvalho.com, onde muita coisa pode ser vista e mais vai ser vista em breve, mesmo em termos musicais, porque está a ser remodelado. É lógico que, como autor, me deveria preocupar muito. Mas também me preocupo como pessoa séria que tento ser. A questão dos downloads é como roubar ou falsificar um produto de outro trabalhador qualquer. Tudo isto me preocupa, porque nos dá um grande mal-viver. Portanto, a internet é uma coisa utilíssima, mas é como o telemóvel e a televisão: depende da forma como a utilizamos e depende de quem a utiliza. Agora há uma nova lei, uma directriz qualquer da Europa, que ainda vai prejudicar mais os autores. Mas isto passa perfeitamente ao lado da maioria das pessoas.
A – As questões do direito de autor também têm muito a ver com o facto de a generalidade das pessoas não verem a propriedade intelectual como um bem igual aos outros, como qualquer outro tipo de propriedade...
PC – Vamos lá ver: a propriedade intelectual não é entendida como deve por quem manda, pelos governos, como é que há-de ser entendida pelas pessoas? O básico de tudo isto deveria começar na escola, não necessariamente em termos de direitos de autor, mas de educação. Mas a escola está a ser tão maltratada, os professores estão a ser tão maltratados, como é que a gente anda para a frente com isto?
A – Seja como for, continuas com vontade de fazer coisas novas...
PC – Olha, neste momento gravei um disco que é principalmente um cartão de visita para que algumas pessoas saibam que eu existo, o que é que estou a fazer. Mas já estou a pensar no próximo, ou pelo menos em cantigas novas. Quando esta revista sair, provavelmente eu estarei a começar uma série de concertos de divulgação do disco, mas é divulgação principalmente do meu trabalho. Porque, pelos anos que tenho disto, já não posso fazer um concerto só para divulgar um disco, ou então havia pessoas que eram capazes de me bater por eu não cantar uma ou outra das cantigas antigas. Basicamente o trabalho é sempre este. Há pessoas, na nossa profissão, que conseguem dar-se uma importância, ao que fazem... Eu temo sempre, quando falo disto, que as pessoas achem que é falsa modéstia, mas não é, isto é fazer umas cantigas: a gente faz umas cantigas, canta...
A – Imaginas-te a fazer outra coisa?
PC – Nunca pensei muito nisso. Às vezes olho para trás e penso: “Eia, já lá vão 46 anos!” Mas eu não dei por eles. Houve uma altura ou outra da minha vida, antes de ter percebido o que me rodeava, em que eu andava um bocado chateado com isto tudo e em que pensei: “Eu vou mas é largar isto tudo, vou nem que seja para empregado de escritório, fazer qualquer outra coisa, porque estou farto de andar a aturar esta gente toda e de ver à minha volta tantas injustiças.” Mas entretanto, as raivinhas foram passando, e realmente não me imagino sem continuar quase a brincar seriamente à música, que foi aquilo que eu comecei a fazer com os Sheiks. E isto tudo tem a ver com a nossa forma de ser. Eu faço música, há outros que fazem carreira. O que também é legítimo. Mas eu sou um péssimo gestor da minha carreira, se é que tenho carreira...
A – Isso parece-me que é uma característica comum a todos os Sheiks, agora que falaste deles. Vocês são todos uns maus gestores de carreiras...
PC – É que nós somos dum tempo e dum tipo de música em que as pessoas se “davam” com mais facilidade. Nós fomos provavelmente ingénuos, para não dizer parvos. E continuamos a ser, felizmente. Continuamos a ir cantar de borla quando é preciso, a qualquer lado... São hábitos, e os hábitos são difíceis de perder. E, depois, não te esqueças duma coisa: nós somos dum tempo em que as pessoas tinham de trabalhar para serem conhecidas, mas hoje em dia as pessoas têm de ser conhecidas para trabalhar. E isto falseia os dados de toda esta questão.
Um homem do 26 de Abril
Há 34 anos, uma canção a que deu voz, “E Depois do Adeus”, foi a primeira senha para o Movimento dos Capitães que, na madrugada de 25 de Abril de 1974, pôs fim a 48 anos de ditadura. Hoje, Paulo de Carvalho prefere dizer que é um homem do 26 de Abril: “Não estando contra o 25 de Abril – aquele que, na altura, foi pensado e feito – eu hoje digo que sou uma pessoa do 26 de Abril porque vejo quase todos aqueles antifascistas, uns lutadores verdadeiros, outros que apanharam o comboio em andamento, quase todos perfeitamente instalados, a viverem nos corredores dos poderes, a tratarem-se bem uns aos outros, a aproveitarem-se de uma série de coisas que vão acontecendo.”
E ele, que não está ligado a nenhuma organização – “a não ser ao Benfica” – não gosta do que vê neste Portugal dos dias que correm. Mas, insiste, não é um pessimista nem um amargurado. É apenas um homem atento e um artista que não desiste de procurar novos rumos para a sua arte. E que se preocupa com “a falta de uma divulgação adequada dos trabalhos que nós fazemos”, questão que considera vital para a sobrevivência da música portuguesa: “Tenho noção, até por aquilo que conheço, que neste momento se faz música maravilhosa em Portugal”, diz. “Só que a música que se está a fazer, aquela que eu acho que poderia interessar, não é a mais conhecida. Eu pergunto: onde é que andam os Gaiteiros de Lisboa, por exemplo? Passam na rádio?”
A falta de “programas de autor” na generalidade da rádio portuguesa é, na opinião de Paulo de Carvalho, uma das principais razões da “apagada e vil tristeza” a que chegámos. Com algumas, raras, excepções, como são os programas de Armando Carvalheda na Antena 1: “O Armando é um dos últimos dinossauros, a quem devemos prestar uma grande homenagem, até pelo que luta, já nem digo pela música portuguesa, mas pela música ao vivo na rádio. Eu de vez em quando passo por lá, porque ele me convida, e sei que há grandes dificuldades para levarmos todos a água ao nosso moinho, sobretudo ele. É por isso que estarei sempre, sempre, ao lado de pessoas como ele. Mas, em compensação, nós temos – aliás, sempre tivemos – gente que faz programas de horas com música estrangeira e que sabe com mais facilidade a cor das cuecas do vocalista de uma banda da cintura industrial de Londres do que propriamente a data de nascimento do Alfredo Marceneiro. E fazem programas sobre rock, sobre música brasileira, sobre música country... Por isso é que nós conhecemos tanto da cultura anglo-americana e tão pouco da cultura do fado, por exemplo.”
Revista Autores - Jul / Set 2008