Eu até pensava que o A.M.Seabra já tinha morrido. Dizem-me que não, que continua a escrever, no Público, mas devo ter com ele o mesmo reflexo condicionado que tenho com as páginas de necrologia: passo em frente e nem dou conta.
Desde que me lembro delas, as prosas do Seabrinha nunca foram para levar a sério. Tal como o Seabrinha ele mesmo, aliás. A malta do cinema crismou-o Simão Boca-Verde, por razões óbvias até para quem nunca o viu. Verdete é outra das alcunhas porque ficou conhecido, e nenhuma delas se deve apenas à cor do sorriso que usava ostentar, mas também – sobretudo – à verborreia e à patética superioridade intelectual que a criatura pretende exibir. Fora a maledicência, não se lhe conhece, já não digo uma obra, mas pelo menos uma ideia, mesmo vaga.
O Seabrinha escreve mal, e talvez por isso gosta de criticar quem escreve bem. Até pode ser capaz de alguma palavra simpática, mas apenas perante coisas que o minguado cérebro de que é portador não consegue alcançar. Uma vez, algures no início dos anos 90, assinou uma espécie de reportagem sobre a apresentação de um filme de Manoel de Oliveira em Nova Iorque. Seabrinha descrevia acaloradamente as reacções, fogachando sobre os detractores do Mestre e transcrevendo alguns parágrafos de uma publicação especializada onde o cronista louvava o «ritmo estonteante» dos filmes de Oliveira, e aconselhava até Martin Scorsese a aprender com ele. Toda a gente percebeu a ironia, aliás nada subtil. Toda a gente, menos o Seabrinha, para quem a caçoada era mesmo um elogio.
O Seabrinha não pode, pois, servir de pretexto para coisa alguma, pelo menos das que se praticam entre gente civilizada. Merece um par de bofetadas? Mereceria até dois, ou mesmo três. Sucessiva e reiteradamente, se tivesse cara para tanto.
Aliás, uns bons pares de estalos é mesmo o que tem faltado na vida intelectual portuguesa dos últimos anos. Contam-se pelos dedos os escritores e os jornalistas e os soit-disant agentes culturais que não se bandearam para o lado fácil do compadrio, do deixa-andar, do vai-me-safando-que-eu-safo-te-a-ti. Fazendo pela vidinha, na boa tradição salazarista tão acarinhada pelos passos & portas & cavacos & demais zoologia.
Não se trata de serem de esquerda ou de direita, apenas de serem. E não são. A cultura já nem sequer serve para desporto da classe média, como em tempos a definiu Alberto Pimenta – o que muito deve ter irritado o Seabrinha. Só assim se explica o rebuliço gerado em volta de um desabafo no facebook, a propósito de mais uma prosa venenosa do Seabrinha. Porque o Seabrinha vive de mal com o mundo e por isso pensa mal, escreve pior, e vê em tudo o que o rodeia o reflexo de si próprio. Não admira que não goste de nada nem de ninguém.
Em resposta a uma prosa do Seabrinha, malcriada e mal escrita como de costume, João Soares recordou o par de bofetadas que lhe prometeu anos atrás e lamentavelmente ainda não pode concretizar. Armou-se um deus-nos-acuda: «ministro ameaça cronistas» titularam os jornais, a oposição colocou-se em pé de guerra, o facebook encheu-se de indignados, e nos jornais só Ferreira Fernandes lembrou que as bofetadas, literárias ou literais, fazem parte da história da cultura portuguesa, que só ganhou com isso. O salsifré culminou com a demissão apresentada por João Soares e aceite por António Costa, perante a estupefacção de todos, a começar pelo Seabrinha. Nada de novo, afinal: em Portugal, é muito fácil um ministro cair por uma anedota, um trejeito, uma gaffe, mas não me lembro de nenhum derrubado por incompetência, má-fé ou simples ladroagem — e não faltam exemplos na nossa história democrática.
O erro não foi João Soares ter dito o que disse. O erro de João Soares foi sobrestimar o país que somos. Se o QI médio da maioria já é a desgraça que se sabe em condições normais de pressão e temperatura, quando submetido à impunidade depressiva das redes sociais o embrutecimento popular consegue chegar a níveis apoplécticos.
João Soares é um político avesso à hipocrisia costumeira dos políticos, não gosta de meias palavras, acredita que vale mais ser do que parecer, e não teme correr riscos em defesa da dignidade e da honra. João Soares terá pensado que, com a mudança política iniciada em Novembro de 2015, mudavam também os olhares da política sobre si própria. Enganou-se. A pequenez do faz-de-conta permanece instalada nos cérebros, cerebelos e bolbos raquidianos de quem manda e de quem é mandado. Não somos o que parecemos, nem parecemos o que somos, mas não faz mal. Salva-se o respeitinho, confunde-se a bosta com papel de embrulho, o Seabrinha até tem, enfim, os imerecidos 15 minutos de fama. E depois admiram-se que o país continue uma choldra.
De facto, só à bofetada.
Para Consumo da Causa, 21.Abr.2016